O Escritor Humberto
de Campos, desencarnado, enviava mensagens ao Chico de tudo o que ele vinha
observando do outro lado. Certo dia visitando Jerusalém foi apresentado a Judas
Iscariotes. Judas costumava visitar aquela região na época de Paixão de Cristo,
para recordar.
Diz, Humberto de
Campos, eu não estava ainda livre da curiosidade do repórter. E procurei ouvi-lo.
— O senhor é, de fato, o ex-filho de Iscariotes? – perguntei.
— Sim, sou Judas – respondeu aquele homem triste, enxugando uma
lágrima nas dobras de sua longa túnica. Como o Jeremias, das Lamentações,
contemplo às vezes esta Jerusalém arruinada, meditando no juízo dos homens
transitórios...
— É uma verdade tudo quanto reza o Novo Testamento com respeito à
sua personalidade na tragédia da condenação de Jesus?
— Em parte... Os escribas que redigiram os evangelhos não atenderam
às circunstâncias e às tricas políticas que acima dos meus atos predominaram na
nefanda crucificação. Pôncio Pilatos e o tetrarca da Galileia, além dos seus
interesses individuais na questão, tinham ainda a seu cargo salvaguardar os
interesses do Estado romano, empenhado em satisfazer as aspirações religiosas
dos anciãos judeus. Sempre a mesma história. O Sanedrim desejava o reino do
céu pelejando por Jeová, a ferro e fogo; Roma queria o reino da Terra. Jesus
estava entre essas forças antagônicas com a sua pureza imaculada. Ora, eu era
um dos apaixonados pelas ideias socialistas do Mestre, porém o meu excessivo
zelo pela doutrina me fez sacrificar o seu fundador. Acima dos corações, eu via
a política, única arma com a qual podia triunfar e Jesus não obteria nenhuma
vitória. Com as suas teorias nunca poderia conquistar as rédeas do poder já
que, no seu manto de pobre, se sentia possuído de um santo horror à
propriedade. Planejei então uma revolta surda como se projeta hoje em dia na
Terra a queda de um chefe de Estado. O Mestre passaria a um plano secundário e
eu arranjaria colaboradores para uma obra vasta e enérgica como a que fez mais
tarde Constantino Primeiro, o Grande, depois de vencer Maxêncio às portas de
Roma, o que, aliás, apenas serviu para desvirtuar o Cristianismo. Entregando,
pois o Mestre, a Caifás, não julguei que as coisas atingissem um fim tão
lamentável e, ralado de remorsos, presumi que o suicídio era a única maneira de
me redimir aos seus olhos.
— E chegou a salvar-se pelo arrependimento?
— Não. Não consegui. O remorso é uma força
preliminar para os trabalhos reparadores. Depois da minha morte trágica
submergi-me em séculos de sofrimento expiatório da minha falta. Sofri horrores
nas perseguições infligidas em Roma aos adeptos da doutrina de Jesus e as
minhas provas culminaram em uma fogueira inquisitorial, onde, imitando o
Mestre, fui traído, vendido e usurpado. Vítima da felonia e da traição deixei
na Terra os derradeiros resquícios do meu crime, na Europa do século XV. Desde
esse dia, em que me entreguei pelo amor do Cristo a todos os tormentos e
infâmias que me aviltavam, com resignação e piedade pelos meus verdugos, fechei
o ciclo das minhas dolorosas reencarnações na Terra, sentindo na fonte o ósculo de
perdão da minha própria consciência...
— E está hoje meditando nos dias que se foram... – pensei com tristeza.
— Sim... estou recapitulando os fatos como se passaram. E agora,
irmanado com Ele, que se acha no seu luminoso Reino das Alturas que ainda não é
deste mundo, sinto nestas estradas o sinal de seus divinos passos. Vejo-O
ainda na cruz entregando a Deus o seu destino... Sinto a clamorosa injustiça
dos companheiros que O abandonaram inteiramente e me vem uma recordação
carinhosa das poucas mulheres que O ampararam no doloroso transe... Em todas as
homenagens a Ele prestadas, eu sou sempre a figura repugnante do traidor...
Olho complacentemente os que me acusam sem refletir se podem atirar a primeira
pedra... Sobre o meu nome pesa a maldição milenária, como sobre estes sítios
cheios de miséria e de infortúnio. Pessoalmente, porém, estou saciado de justiça,
porque já fui absolvido pela minha consciência no tribunal dos suplícios
redentores. Quanto ao Divino Mestre – continuou Judas com os seus prantos –
infinita é a sua misericórdia e não só para comigo, porque se recebi trinta
moedas, vendendo-O aos seus algozes, há muitos séculos Ele está sendo
criminosamente vendido no mundo a grosso e a retalho, por todos os preços, em
todos os padrões do ouro amoedado...
Humberto de Campos (Recebida em Pedro
Leopoldo a 19 de abril de 1935, por Chico Xavier)
tri·ca
substantivo feminino
substantivo feminino
1. Chicana, trapaça, forense, enredo, maranha.
2. Nica, futilidade.
O ARAUTO
ANO
XIV – Nº 82 – JANEIRO/FEVEREIRO – 2011
PUBLICAÇÃO
BIMESTRAL
ÓRGÃO
OFICIAL DA USE – INTERMUNICIPAL DE PIRACICABA
Sede e correspondência:
Rua
15 de Novembro, 944 14º andar – sala 143
13400‑370 – Piracicaba ‑ SP
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