sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

PÃES E PEIXES

- Sinto muito, Valdo, mas não há condições para o pagamento do décimo terceiro salário. Temos, no banco, apenas vinte por cento do necessário.
O presidente da Creche Discípulos de Jesus, nobre entidade protestante que atendia cento e vinte crianças, desligou o telefone amargurado. A informação de Justino, o tesoureiro, afligia-o duplamente: uma disposição da lei trabalhista deixaria de ser cumprida ao mesmo tempo em que ficariam frustradas as expectativas das funcionárias, mulheres pobres que contavam com aquele dinheiro para o Natal.
Há muito sedimentara-se em seu espírito penosa dúvida: valeriam os sacrifícios, preocupações e noites insones para manter a creche, sem o devido apoio? Numa cidade tão grande, raros tomavam conhecimento do que se realizava ali. Nem mesmo na comunidade religiosa da qual participava existia interesse maior pelo serviço. Se seus irmãos em crença se dispusessem a “arregaçar as mangas” e “abrir a bolsa”, tudo seria mais fácil. Jesus definira com propriedade a questão ao proclamar que a Seara é grande e os trabalhadores são poucos. A dificuldade presente parecia-lhe a gota d’água a transbordar o cálice de suas sofridas perquirições íntimas, quebrantando-lhe o ânimo, sugerindo desistência.
Como ocorria habitualmente, sempre que problemas o afligiam, Valdo buscou inspiração no Evangelho. Abriu-o ao acaso e leu, em Mateus, capítulo quinze:
“Ao sair dali, Jesus veio costeando o mar da Galiléia e, tendo subido ao monte, lá se sentou. Logo dele se acercou grande multidão, trazendo mudos, cegos, coxos, aleijados e outros muitos que foram colocados a seus pés; e ele a todos curou, de sorte que a multidão se mostrava maravilhada ao ver que os mudos falavam, os coxos andavam, os cegos enxergavam e os aleijados ficavam sãos; e todos glorificavam o Deus de Israel.
Jesus chamou os seus discípulos e lhes disse:
- Tenho compaixão destas criaturas, porque há três dias que estão sempre comigo e nada têm que comer. Não quero despedi-las em jejum para que não desfaleçam no caminho.
Disseram-lhe os discípulos:
Donde receberíamos neste deserto tantos pães para fartar tão grande multidão?
Perguntou-lhes Jesus:
- Quantos pães tendes?
- Sete e alguns peixinhos.
Jesus ordenou então ao povo que se sentasse no chão e, tomando os sete pães e rendendo graças, os partiu e deu aos discípulos para que os distribuíssem pelo povo. Tinham também alguns peixinhos; e ele, abençoando-os, mandou que estes igualmente fossem distribuídos. Todos comeram, ficaram saciados e ainda encheram sete cestos com os pedaços que sobraram. Ora, os que comeram eram em número de quatro mil homens, além de mulheres e crianças. Despedido o povo, Jesus entrou na barca e foi para o território de Magadã.”
Como ocorria, invariavelmente, a leitura do texto evangélico revigorou o ânimo de Valdo que, possuído por inquebrantável resolução, tomou o telefone e discou:
- Alô...
- Justino?
- Oi, Valdo.
- Pode soltar os cheques do décimo terceiro.
- Conseguiu o dinheiro?
- Não, mas com a ajuda de Jesus ele virá!
- Não quero parecer cético. Devo lembrar- lhe, todavia, que não se trata de valor pequeno e teremos apenas vinte e quatro horas para providenciar a cobertura.
- Tenhamos fé, companheiro! Jesus dispunha de apenas sete pães e alguns peixes e alimentou uma multidão de quatro mil pessoas!
- Valdo, sejamos práticos. O tempo dos milagres passou. Dinheiro não se multiplica no banco do dia para a noite!
- Pague! Assumo a responsabilidade!
- Tudo bem, profeta. Seja o que Deus quiser!
No dia seguinte o tesoureiro lhe telefona:
- Recebi um comunicado do banco.
- Quanto devemos depositar?
- Nada.
- Nada?!
- Informaram que houve um depósito ontem, feito por um irmão que se propôs a ofertar um donativo de natal. Deu exatamente para completar as despesas com o décimo terceiro!...
Valdo desligou o telefone de olhos úmidos. Incontida emoção revigorava seu espírito valoroso. Não havia motivos para desânimo. Jesus velava, sempre pronto a socorrer seus seguidores, conforme prometera.
Assim como o Cristo multiplicou pães e peixes para atender a multidão faminta e sofredora, a boa vontade multiplica indefinidamente os recursos com os quais podemos e devemos ajudar nossos irmãos.
Que o digam os dirigentes de organizações assistenciais. Raramente há dinheiro suficiente, mas os recursos chegam invariavelmente, sustentando o serviço, enquanto persistem a boa vontade e a disposição de servir. 

03. SIMONETTI, Richard. Pães e peixes. In.: Endereço certo. 6. ed. Araras:IDE, 1993. cap. 11.

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8 - INTERVENCÃO SUPERIOR

“Que remédio, então, prescrever aos atacados de obsessões cruéis e de cruciantes males? Um meio há infalível: a fé, o apelo ao Céu. Se, na maior acerbidade dos vossos sofrimentos, entoardes hinos ao Senhor, o anjo, à vossa cabeceira, com a mão vos apontará o sinal da salvação e o lugar que um dia ocupareis”.
“O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO” — Capítulo 5º — Item 19.
Embora o retraimento forçado a que se impuseram o Coronel e Sra. Santamaria, algumas vezes sentiam-se obrigados a quebrar tal insulamento, por impositivos superiores, de que não se podiam furtar. O sorriso não lhes aflorava aos lábios e, ressequidos interiormente, conservavam estranha quão injustificável mágoa contra a sociedade, a vida, a Divindade... Consideravam-se dilapidados nos bens da existência e, face à impossibilidade do desforço, com que muitos supõem aliviar-se, descarregando os instintos e paixões insanos, recolheram-se ao ostracismo, à mudez... Concomitantemente, os cônjuges distanciavam-se a pouco e pouco, um do outro, não mais encontrando estímulos na convivência doméstica. Certo é que se transferiam a responsabilidade pelo insucesso psíquico da filha, que supunham vítima inerme dos caprichosos genes e cromossomos portadores da inarmonia mental que nela eclodira pelo acaso infeliz.
Celebrava-se, então, expressiva comemoração da República, evocando-se, na “Semana da Pátria”, o Dia da Independência, no qual país se liberara do jugo ancestral, a fim de atender à sua destinação histórica. Dentre as celebrações em pauta, fora programado um banquete reunindo os heróis da última guerra, em requintado Clube Social. A recepção, em traje a rigor, objetivava, também, maior intercâmbio entre velhos amigos, muitos dos quais fruindo o justo prêmio da reforma, foram trasladados para a Reserva. Desse modo, fora impossível evadirem-se ao compromisso relevante.
No dia aprazado, o Coronel despertou mais indisposto do que habitualmente, nos meses derradeiros. Fora acometido reiteradas vezes durante a noite, por singular pesadelo, do qual despertava estafado, sôfrego, para novamente recair no mesmo dédalo onírico, em que se fazia personagem de articulações nefandas e crimes inumanos. Experimentava a sensação de mergulhar em cenário sombrio e macabro por alguns momentos, recobrando a custo a lucidez, para se repetir a infame sortida aos mesmos sítios e sofrer asfixia, náuseas, horror.
Eram lugares lôbregos... Via-se, agitado, caminhando sobre lajedos irregulares, enquanto maquinava sórdida vindita... Respirava ódio... A estranha personagem, que via e sabia-se ser ele próprio, envergava sotaina negra que lhe atrapalhava o passo, obrigando-o erguê-la, a fim de saltar os esgotos abertos, exalando putrefação nas ruelas mergulhadas em sombras... A agitação do sacerdote agitava-o... Repentinamente sentia-se em presídio, subterrâneo, úmido, com vaza fétida a escorrer, onde alguns homens e mulheres sofriam ritual nefando de torturas covardes, irracionais. Seus corpos alquebrados, alguns partidos com fraturas expostas, em feridas pútridas, tudo resultado da roda infame, blasfemavam... Algumas mulheres desvairadas altercavam, misturadas aos despojos orgânicos... À sua chegada recuavam em ríctus e esgares superlativos, enunciando seu nome entre exclamações injuriosas, detestáveis, enquanto se referiam, também, a outra pessoa, sua comparsa, de que se diziam vítimas... A visão tormentosa, mortificava-o... De inopino, não suportando o sonho macabro, logrou desalgemar-se do torpor que o vencia, levantando-se banhado por álgidos suores. Não retornou ao leito.
Todo o dia foi-lhe desagradável. Não esquecia as cenas truanescas, os rostos, congestionados uns pelo ódio, patibulares outros, sem expressão, e mesmo após o almoço, tentando a sesta, não conseguiu o repouso que lhe fazia falta.
A noite cálida e estrelada parecia uma taça emborcada, cheia de brilhantes ornando a cidade colorida e luminosa.
A partir das vinte e uma horas os convidados deram entrada na sala de recepção do Clube, e os júbilos espocavam em todos os semblantes. Canapés e aperitivos entretinham os convidados, enquanto aguardavam a lauta refeição.
O Coronel Constâncio reviu amigos queridos, recordou emoções esquecidas, no entanto, vivas, e por momentos olvidou as amargas desditas que o exulceravam. Companheiros de armas, colegas da Escola, formavam um préstito de alegrias que o revigoravam.
De surpresa em surpresa, defrontou-se com antigo e dileto amigo, que servia a Pátria no Exterior e agora se encontrava de retorno. À efusão dos abraços e sorrisos, passaram às recordações, quando o Coronel Epaminondas Sobreira, indagou, interessado:
— Não voltei a ter notícias de Ester. Como passa, desde aquele dorido incidente?
— Sem esperanças! — Retrucou o antigo “cabo de guerra” empalidecendo e umedecendo os olhos. — Minha desventurada filha está louca, irrecuperável, sobrevivendo por milagre, pois, sequer, não teve, ainda, o lenitivo da morte...
— Perdoe-me! — Justificou-se o amigo. — Sei quanto deve dilacerar-lhe a alma... Eu lá estava naquela noite.
— São anos de lágrimas, suores, intranqüilidade...
Segurando o braço do interlocutor propôs, emocionado:
— Sentemo-nos no jardim, a distância... Estou muito emotivo desde aquele dia.
O Coronel Epaminondas sentiu o contato da mão gelada e o leve tremor que sacudia o amigo sofredor.
— Não falemos sobre isso. — Sugeriu, delicado. — Eu sei o quão lhe é mortificante.
— De fato — redarguiu o outro, — no entanto, eu, que tenho preferido o cárcere do silêncio durante todo esse tempo infinito transcorrido, sinto que me fará bem falar com você.
Em caramanchão próximo à piscina que refletia a noite coruscante, o sofrido genitor descerrou os painéis mais íntimos do coração duramente lanhado. Seus sonhos destroçados e suas esperanças desfeitas! E o amor à filha! Sabê-la transformada num animal irreconhecível e aprisionada em camisa-de-força, a fim de diminuir-lhe a fúria, oh! tudo isso constituía carga superlativa à sua devoção paterna.
À medida, porém, que exteriorizava a profunda agonia ao amigo, atento, que participava do drama, comovido, teve a impressão de que desoprimia o peito, a alma, como se desarticulasse anéis constritores que o despedaçavam por dentro.
— Você tem orado? — Inquiriu o ouvinte. — A oração produz milagres de renovação e paz, modificando paisagens sombrias e fortalecendo o homem.
— Não, não mais tenho orado. — Retorquiu, quase irado, traindo a revolta em que descambara. — Perdi a fé... A princípio, tentei iludir-me, rogando a Deus, aos santos, recorrendo à Igreja... Tudo inútil! Hoje sou uma nau sem leme, sem destino, à deriva.
Pranto copioso jorrava-lhe pela face fortemente assinalada pela fúria do desespero sem refrigério.
— Mas a função da prece — elucidou, sensibilizado, — não é somente a de requerimento, petição. Também lenitivo, renovação. Nem sempre traz o objetivo de atenuar a dor, mas compreendê-la, conseqüentemente, lenindo a alma. Além disso, é veículo, interfônio para a comunhão com Deus... Gostaria de conversar demorada-mente com você. Poderia receber-me ou visitar-me, quando?
— Infelizmente — explicou, titubeante, — não mais tenho um lar para oferecê-lo aos amigos... Quero dizer: o apartamento é o mesmo, porém, triste, sem vida... Não saímos, minha esposa e eu.
— Faço questão — interrompeu-o, com uma leve palmada no ombro — que você e Margarida venham jantar conosco, no próximo sábado. Informalmente, como dois amigos, dois irmãos. Mercedes, a quem comunicarei logo, agora, ficará exultante. Creio que sabe como nos são queridos, você e a esposa.
Continuo residindo na mesma casa no Leblon. Estamos a sós. Os filhos já casados. Beatriz está em França com o esposo e Giórgio em São Paulo. Sou avô de dois anjos celestes, sabia? Combinado. Aguardá-los-emos, às 20 horas.
O Coronel Santamaria fitou o companheiro transformado em cireneu e não saberia explicar as emoções, a paz, a súbita satisfação que experimentava.
Qual estivesse magnetizado, respondeu, maquinalmente, sorrindo:
— Combinado.
— Unamo-nos aos grupos que já devem procurar-nos.
— Sim, sim, esquecera-me; apressemo-nos.
O braço do Coronel Epaminondas, passando pelas costas do colega, apoiava-se ao ombro do outro lado. Eram dois irmãos que se reuniam na família da amizade superior.
Adentraram-se pelo salão festivo e perderam-se nas confabulações, brindes e algazarra que a todos empolgavam.
Sem poder-se explicar o sentimento de renovação que o surpreendera, o pai de Ester retornou ao lar como se estivesse revigorado. Ante as duras penas que vivia, também o organismo passara a dar mostras de cansaço, repontando, já, os sinais do desgaste que o fazia preocupado.. Conversou com a esposa, narrando-lhe o bom estado de espírito do colega e quanto lhe fora oportuna a conversação, mais valiosa do que o banquete, em si mesmo. Cientificada, a senhora, de pronto concordou, nascendo-lhe, também, agradável pressentimento em torno do futuro reencontro. Ela, igualmente, dialogara com dona Mercedes, que se interessara pelo destino da sua filha. A simpática senhora, apesar da balbúrdia, na sala, manteve-se atenta, carinhosamente interessada e repetia: — “Mas, nem tudo está perdido. Ë uma pena, tudo isto!”
Dizia-o com sentimento, como a lamentar a impossibilidade de fazer alguma coisa que considerava importante, porém, inconveniente. Prometera-lhe uma visita para colóquio mais amplo e cuidadoso. Prometia examinar o problema com profundidade...
Foi, portanto, em clima de esperanças felizes que os Santa-marias na noite acordada rumaram, confiantes, na direção da residência dos Sobreiras.
A vivenda suntuosa demorava-se cercada de árvores, recuada da rua. Em dois pisos, era agradável na arquitetura e na decoração.
Recebidos com carinho, foram introduzidos, incontinente, na sala ampla e confortável.
— Desejo ter o prazer de apresentar-lhe o amigo Joel — disse o anfitrião.
— Ë também militar, estando no posto de Tenente Coronel. Você o conhece...
— Sim, — concordou o apresentado, — tive a honra de servir com o Coronel, na Itália...
— Lembro-me de alguma forma — assentiu.
Não pôde, porém, ocultar o enfado que o surpreendeu, face ao imprevisto constrangimento que aquela comparência colocaria na conversação que esperava manter.
— Convidei-o especialmente para esta noite. — Aduziu o colega.
— Somos amigos e, como eu aguardasse você com acendrado interesse, pensei no bem que a presença do nosso Tenente-Coronel poderia dispensarnos a todos.
— Sim, sem dúvida. — Quase resmungou.
O semblante fez-se-lhe sombrio, ante o receio de que o tema sobre a filha e sua enfermidade passasse à participação de estranhos. Esforçou-se para manter-se delicado e a palestra se generalizou, sem maior importância.
A refeição simples e saborosa transcorreu agradável, O Tenente-Coronel era viúvo há poucos meses, embora mantivesse o semblante jovial, desanuviado. Jovem de 40 anos, era de compleição bem proporcionada, destacando-se nele as marcas do atleta, possuidor de olhos brilhantes que fulguravam na face dando-lhe máscula beleza. Tranqüilo, sua voz agradava, sem afetação e pelo comedimento de que se fazia possuidor.
Concluído o jantar, a senhora Mercedes convidou os visitantes à varanda confortável onde seria servido o café.
Descontraídos, a conversa girou por assuntos de somenos importância.
Soprava uma aragem fresca, levemente perfumada provinda do jardim, adentrando-se em ondas contínuas, suaves.
— Alguma nova sobre Ester? — Indagou o Coronel Sobreira. —Desde o nosso reencontro tenho-a na mente e na oração. A falta de convivência entre nós, por circunstâncias superiores, não me facultou informá-lo de que hoje, ou melhor, há já alguns anos sou homem de fé. As experiências concederam-me ampla visão do mundo, além da esfera física, levando-me a entesourar valores extraordinários com que se harmonizou o meu ser, antes em duradoura agonia.
À sua semelhança conheci de perto a aduana que descamba ná loucura e não fosse a Misericórdia Divina teria sucumbido. Mercedes e eu provamos o pão ázimo do sofrimento, preparado com as lágrimas salgadas do desconforto...
Fez uma pausa, ensejando-se melhor coordenação de idéias e, simultaneamente, observou as reações dos ouvintes, O matrimônio Santamaria chorava discretamente. A senhora Mercedes, gentil, acarinhava a amiga, vergada ao peso do martírio.
De imediato prosseguiu o narrador:
— Vocês ignoram que o nosso filho Giórgio, há quatro anos atrás foi vítima de sórdida obsessão, tendo sido, face à minha ignorância, então, internado para penoso tratamento... Inesperadamente, ele que era jovial e transudava alegria de viver, tornou-se arredio, amargurado, sombrio. Tentamos arrancá-lo do mutismo a que se entregara, usando todas as possibilidades, sem qualquer resultado. Noivo, abandonou Lucília, sem explicações, e, freqüentando o período da conclusão do curso de Direito, deixou os estudos. Parecia temer o contato, a presença de outras pessoas... Retraiu-se a tal ponto que os necessários tratos de alimentação e higiene passaram a ser negligenciados para nosso desgosto superlativo...
“Foi nesse comemos que o dr. Ernesto Vialle, seu psiquiatra, sugeriu-nos interná-lo, a fim de que fosse submetido a rigorosa assistência especializada.
“Vocês imaginam a nossa indescritível desolação. Submetemo-nos à adaga do sofrimento que nos decepava esperanças e sorrisos. Estávamos a sucumbir, quando o nosso Joel visitou-nos, e face ao nosso abatimento, informado das razões, prontificou-se ajudar-nos... Ouvindo-o, ante as alvíssaras que surgiam, renovamo-nos, dando início a nova vida, de que resultou o retorno da alegria a esta casa, transformada, então, em túmulo que sepultava angústias acerbas.. Por isso, convidamo-lo a estar conosco nesta noite, quando os recebemos com imenso carinho: Margarida e você.”
Tinha os olhos brilhantes pelas lágrimas.
— É psiquiatra, o nosso Tenente-Coronel? — interrogou o genitor de Ester, interessado.
— Não, não é psiquiatra — elucidou o anfitrião. — É um homem dotado de “sexto sentido”, de mediunidade.
Talvez pressentindo o rumo do esclarecimento, interpôs-se o Coronel Santamaria:
— Desculpe-me, no entanto, a minha ignorância é tal sobre essas questões, que me reservo a descrença, a entranhada antipatia a essas coisas..
- Ouça-me sem prevenção — interrompeu-o o amigo jovialmente. — Não se trata de “coisas”. A mediunidade é faculdade para-normal relevante, objeto de estudos nos Centros de maior cultura, atualmente, no globo. Investir contra, por preconceito, é arrematada idiotia, disfarçada em presunção.
“Vocês nos conhecem demasiado para terem uma opinião sobre o nosso caráter moral. Homem austero que sempre fui, indiferente e frio às manifestações místicas de qualquer procedência, temperado nos mesmos fornos em que você enrijou as fibras da dignidade, não me foi fácil mudar conceitos, opiniões, estruturas de fé. Religioso por hábito social, não possuía religiosidade de fato que me confortasse interiormente. Crer por acomodação, transformara-se em descrer por convicção.”
— Mas, — interferiu, contrafeito, — mediunidade não é algo que se vincula à necromancia, Espiritismo, candomblé?.
- Sem dúvida, — respondeu, sem perder a delicadeza — como a inteligência que está presente nos ideais libertadores, também se manifesta nos lúridos conciliábulos dos campos de concentração.
A mediunidade é, digamos, uma via de acesso. Por ela transitam os que viveram na Terra consoante as concessões de quem a governa.
— Todavia — voltou a interromper — os “que viveram na Terra”, estão mortos, aniquilados... E essas práticas de Espiritismo são-me detestáveis.
— Equívoco de sua parte, meu amigo. Também eu assim pensava. A realidade é bem outra.
— Por favor, Constâncio — interveio a esposa. — Ouçamos sem prevenção. Você crê que Epaminondas se permitiria crença ou atitude que lhe desabonasse a dignidade?
A pergunta oportuna, soou como uma reprimenda.
O ar saturava-se de vibrações superiores, magnetizado por Espíritos Felizes que se faziam inspiradores e condutores daquele encontro relevante.
Agradecendo a referência nobre que lhe fizera a dama, o Coronel Epaminondas justificou:
- Bem sei que tudo isto lhes parece estranho. Não poderia ser de outra forma. Conosco ocorreu o mesmo. Somos seres atrasados, fundamente marcados pela vaidade a que nos aferramos, supervalorizando-nos e, em conseqüência, tombando vítimados pela própria imprevidência.
“O Espiritismo, que a intolerância dos clérigos e cientistas do passado, muito ciosos da própria prosápia tachou de “doutrina satânica” e “fábrica de loucos”, respectivamente, ultrapassou a previsão maldosa dos seus detratores.
Convenhamos que muitos homens ilustres, como religiosos honestos e pesquisadores conscientes estudaram-no e investigaram-no experimentalmente, à saciedade, concluindo pela legitimidade dos fatos observados e pela excelência dos seus postulados. Todos quantos o combatem jamais o estudaram ou conheceram suas múltiplas facetas, quer no campo científico, filosófico ou religioso. Guerreiam-no pela empáfia de que se revestem e pela preguiça de se atualizarem. São os tradicionais inimigos do progresso, das idéias novas... Fazem-no como você hoje e eu ontem, mal informados, que nos fechamos e abjuramos o que desconhecemos, apertados na constrição das vaidades feridas... Todavia, esta é uma discussão éticofilosófica de largo porte, que não se coaduna com a premência de tempo, do momento. Fornecer-lhes-ei literatura especializada sobre o assunto, especialmente a que responde pelas suas bases doutrinárias: Kardec, Denis, Bozzanno...”
Sorriu, descarregando a ligeira tensão que sobrepairava no ambiente.
- O importante — deu curso às elucidações — é que, através da mediunidade do nosso caro colega de farda, o Giórgio recobrou a saúde.
— E não seria o tratamento — solícitou esclarecimentos o Coronel - Santamaria — a que ele estava sendo submetido, a causa da recuperação da sua saúde?
— Sim, não poderia sê-lo? — Também indagou dona Margarida.
— Poderia ter sido — explicou. — A princípio, quedei-me em dúvida, no primeiro instante... Nossa família jamais se envolvera antes com qualquer prática mediúnica, qual ocorre com vocês, todavia, Giórgio e Ester... o que atesta que não é o Espiritismo a causa da loucura, antes...
— Não digo que seja a causa — argumentou — mas uma causa.
— Bem, como outro fator qualquer de ordem social, emocional, comunitária, religiosa, além daqueles de procedência orgânica... Porém, como as causas estão presentes em quase todos os cometimentos, na condição de fatores predisponentes uns, preponderantes outros, ninguém se atreve a acusá-los, como fazem em relação ao Espiritismo, não é mesmo?
— Tem razão...
— O nosso afeiçoado Joel — prosseguiu — em contato com os Espíritos que o assistem e amparam, no ministério da caridade a que se afervora, dedicado, soube que a loucura do Giórgio tinha procedência numa obsessão de natureza espiritual, graças a razões pregressas do seu e dos nossos Espíritos... Explicou-nos o mecanismo da justiça divina, através da reencarnação, de forma lógica e irrefutável, propondo-se levar-nos a participar de algumas sessões mediúnicas especializadas, onde a venda nos caiu dos olhos, ensejando-nos sublime “estrada de Damasco”. Desde o primeiro tentame, a melhora do filho fez-se imediata... Passamos a ser espiritualmente informados do quanto com ele ocorria, até o momento do encontro com o seu perseguidor, que nos sensibilizou mediante a narração dos seus padecimentos.
Não foi fácil. Nada é fácil. Todo e qualquer empreendimento é sempre complexo, mesmo quando conhecido pela sua simplicidade, particularmente aquele que diz respeito à vida, à alma reencarnada...
Na interrupção que se fizera natural, podia-se sentir o concentrado interesse dos convidados, ouvindo religiosa, comovidamente. Mãos e mentes vigorosas aplicavam passes nos circunstantes, dilatando o entendimento, a percepção dos neófitos na palpitante questão, libertando-os, também, dos fluídos e miasmas perniciosos que os envenenavam, turbando-lhes o discernimento.
— Duas, três semanas transcorridas — ratificou, — nosso filho estava curado, voltava ao lar, tranqüilo e diligente quanto antes, assim prosseguindo até hoje.
“Ora, desejávamos a sua e a permissão da Margarida para examinarmos mediunicamente o problema de Ester. Depois de amanhã é dia de sessão na Sociedade que freqüentamos e a oportunidade parece-nos lisonjeira. Em processos que tais, o tempo é muito importante, a fim de evitar-se que surjam difíceis condicionamentos no paciente, molestas e complicadas lesões... Darlhes-emos notícias detalhadas e concertaremos atitudes, programas.”
— Concordo, de minha parte, — apressou-se a senhora —sem pestanejar.
— Até há pouco — acrescentou o Coronel Santamaria — preteria-a louca a metida com essas... Diante da sua argumentação, da confiança que nos identifica, não há como discordar, embora o estranho que tudo isso me parece...
— É perfeitamente lógico e você não poderia ter outra reação.
O Tenente-Coronel tudo escutava em silêncio, com modéstia surpreendente.
— O senhor está viúvo há pouco — indagou-lhe o visitante —e parece-me tranqüilo, confortado. A morte é-me tão desagradável para não dizer cruel, O senhor, sendo jovem, não se rebelou?
— Não. — Redargüiu o médium com simplicidade. — Minha Isabel, como eu, militava nas hostes espíritas... Sinto-lhe a falta física no lar, não a ausência total, porqüanto, estando viva, comunicamo-nos vez que outra. Inteirado e consciente da imortalidade, preparo-me para o encontro definitivo, mais tarde.
Como não há morte, a problemática se constitui apenas de tempo e fé. O tempo reunir-nos-á e a fé ajudar-nos-á vencê-lo.
— Que bela Doutrina! — Exclamou dona Margarida. — Como se pode ter um conceito desse, ante o terrível flagelo da morte?
- Pela certeza — disse a senhora Mercedes — incondicional da sobrevivência. Nós que somos mães, não conseguimos sustentar a esperança quando falecem todos os recursos, graças ao amor? O mesmo amor que não desaparece nem se desarticula, ante a injunção da orgânica, é a fonte geradora dessa tranqüilidade adquirida mediante os fatos do intercâmbio espiritual de todo dia.
- Gostaríamos, já que estamos concordes — propôs o Coronel Sobreira, — que orássemos, realizando a primeira rogativa em prol de Ester, mediante a terapêutica espírita.
Como todos aquiescessem, o anfitrião desatou superior emotividade e orou de forma surpreendente, em perfeita sintonia com as Entidades presentes.
Concluída a prece, um silêncio se abateu sobre o grupo e Joel, com o semblante visivelmente transfigurado, transmitiu significativa mensagem de conforto e esperança, ante a natural arguta curiosidade dos Santamarias.
A oportunidade fora excepcional.
Às despedidas, reconhecidos, os pais de Ester com raciocínios variados, partiram, aguardando o futuro, enquanto a escumilha da noite piscava estrelas, no alto, a distância...

01. FRANCO, Divaldo Pereira. Intervenção superior. In.:. Grilhões partidos.
Pelo espírito Manoel Philomeno de Miranda. Salvador: LEAL, 1974. cap. 8.


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quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Ouvir com amor

“A moral sem as ações é o mesmo que a semente sem o trabalho”.
De que vos serve a semente, se não a fazeis dar frutos que vos alimentem?
 Grave é a culpa desses homens, porque dispunham de inteligência para compreender.
Não praticando as máximas que ofereciam aos outros,
renunciaram a colher-lhes os frutos.” (Questão 905 de O Livro dos Espíritos.)
“O homem de bem é bom, humano e benevolente para com todos,
 sem distinção de raças, nem de crenças, porque em todos os homens vê irmãos seus.”
“Respeita nos outros todas as convicções sinceras e não lança anátema aos que como ele não pensam.”
“(...) o homem de bem respeita todos os direitos que aos seus semelhantes dão as leis da Natureza,
como quer que sejam respeitados os seus.”
(O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. XVII – Sede Perfeitos, item 3, parágrafos 7e penúltimo.)
Vivendo em sociedade precisamos nos manifestar, para isso usamos a linguagem, que pode ser oral,
 escrita e pictórica, ou seja, os diversos canais de comunicação.
Pela linguagem manifestamos nossos pensamentos, sentimentos e emoções.
A linguagem oral é mais usada e, de modo geral, podemos dizer que é mais direta e atinge o interlocutor com maior carga de emoções.
Em nossa vida de relação não podemos deixar de usar o juízo de valores,
através da análise das situações que vivemos e as formas de  interação com as pessoas com quem convivemos.
Daí nasce a crítica, que não se confunde com a maledicência.
A crítica é a busca da verdade pelo exercício da razão.
 A maledicência é comentário
inconsistente, veiculado sem objetivos éticos, onde não há preocupação com a verdade,
com a utilidade e com o bem. A maledicência é a manifestação do comportamento que expressa o egoísmo e a vaidade.
 O comentário visa apenas diminuir o valor de quem está no foco para,
artificial e enganosamente, pretender elevar-se acima do outro.
No entanto, quando sofremos algum julgamento, pela linguagem oral ou escrita,
 deveremos, primeiramente, avaliar se o comentário é expressão de uma crítica ou de
maledicência. Se percebermos que o fruto da análise feita com relação à nossa
pessoa é manifestação da maledicência, não deveremos nos importunar,
nem nos agastar com ela.
Se não serve, deve ser esquecida; a não ser que, por sua gravidade e insensatez,
 exija que preservemos nossos direitos, como Espírito, como pessoa
e como cidadão. Às vezes, recebemos críticas e a pessoa que as faz
 não está sendomaledicente. É sincera e honesta, mas a crítica é equivocada,
certos elementos que a compõem não são consistentes.
 Temos então o direito de amorosamente rejeitar a crítica,
esclarecendo o crítico.
Ao lado das informações que os Evangelhos nos trazem e também a Doutrina Espírita,
os psicólogos espíritas Almir Del Prette e Zilda Del Prette (referência abaixo),
baseados nas ciências do comportamento, apresentam-nos alguns passos que deveremos observar para,
 quando a crítica não for procedente, podermos rejeitá-la de forma
correta, assertiva.

Rejeitar a crítica

Procuremos observar, quando recebermos uma crítica, os seguintes pontos:

1. Permitir que o crítico termine de falar.
Ao recebermos uma crítica, a tendência natural é, sob impacto
emocional, reagir instantaneamente, procurando justificar-nos, juntando
argumentos para rebater as observações feitas, as quais, de alguma
maneira, mostram nosso possível desacerto.
De início não sabemos se a crítica é procedente ou houve algum
mal-entendido, ou ainda, é uma manifestação
de maledicência. Então, deixemos que a pessoa exponha todo
o seu pensamento. Ouçamo-lá com atenção. Se for o caso, façamos
até anotações. Demonstremos com a postura corporal assertiva que estamos acompanhando
os seus argumentos e que isso fique claro para ela.

2. Controlar o desconforto da raiva.
Normalmente, quando recebemos uma crítica altera-se o nosso estado
emocional, que pode ir da simples irritação à raiva. Nesse estado,
registram-se alterações físicas e fisiológicas:
aceleração do batimento cardíaco, empalidecimento ou ruborização,
diminuição da saliva e outros.
Quando a crítica é infundada ou se trata de maledicência, os efeitos
psicológicos e físicos são mais intensos.
Pode haver, também, um desequilíbrio psíquico ou espiritual.
Então, manter um controle emocional saudável é necessário para
podermos analisar a crítica e saber aproveitá-la adequadamente.

3. Compreender que ao outro assiste o direito de ter opinião contrária
à nossa. Procuremos ouvi-lo com atenção e deixemos que ele perceba isso.
Assim ele compreenderá que nós estamos respeitando o seu direito
de opinar.
Em O Livro dos Espíritos, na questão 833, há o esclarecimento
de que: “No pensamento goza o homem de ilimitada liberdade, pois
que não há como pôr-lhe peias. Pode-se-lhe deter o vôo, porém,
não aniquilá-lo.”
Procuremos criar uma empatia com o crítico. Vejamos o assunto
do ponto de vista dele. Manifestemos que entendemos o que ele disse
e também o seu sentimento.

4. Solicitar detalhes, se necessário, para melhor compreender a
posição assumida pelo crítico. Quando os motivos ou os fatos
geradores da crítica não ficarem muito claros, peçamos, com a tranqüilidade
possível, detalhes ou esclarecimentos

5. Manifestar a discordância
claramente, no total ou em parte, quanto à veracidade da crítica.
Após a análise dos argumentos apresentados na crítica, com o exercício
da razão, verifiquemos se é procedente ou não. Se julgarmos
que ela não é procedente, sem agressividade discordemos dela totalmente
ou na parte que não tenha fundamento.

6. Estabelecer a veracidade dos fatos que estão sendo apontados.
Ao ouvir a crítica verifiquemos se há veracidade nos fatos que estão
sendo apresentados ou se apenas se trata de interpretação daquele que
a formula.

7. Solicitar mudança, se necessário, quanto à forma como a crítica
foi feita e sobre a ocasião escolhida. Se a crítica não foi feita de forma
apropriada ou foi manifestada de forma agressiva, desqualificando
o destinatário, sem respeito à individualidade e privacidade, embora
ela seja procedente em parte ou na totalidade, devemos pedir ao seu
emissor que mude a sua maneira de se expressar, respeitando a dignidade
daquele que a ouve.

8. Agradecer à pessoa pela sua preocupação. Se constatarmos que a pessoa
fez a crítica de forma adequada e procedente na sua totalidade ou em
parte, é oportuno agradecer-lhe a manifestação que, sem dúvida, se trata
de uma forma de amor ao próximo, como ensinou o Mestre Jesus.

BIBLIOGRAFIA:
KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos.
71. ed. Rio de Janeiro: FEB, 1991.
______. O Evangelho segundo o Espiritismo.
116. ed. Rio de Janeiro: FEB, 1999.
PRETTE, Almir e Zilda. Habilidades Sociais
Cristãs. 1. ed. Petrópolis (RJ). Editora Vozes,
2003.
Reformador/Setembro 2005