Deus criou os espíritos para se aperfeiçoarem incessantemente, usufruindo
cada vez mais da felicidade. Deus não é o criador da infelicidade. O homem, ao
longo da sua existência, constrói situações que terá de enfrentar
corajosamente. É dever do ser humano lutar por sua evolução. O espírito é dono
absoluto da matéria, cabendo a ela obedecê-lo. Quando ele tem força para construir
no bem, procurando evitar o mal, pode transformar o próprio destino para
melhor. "A caridade cobrirá a multidão de pecados" (/ Epístola de
Pedro, Cap. IV, v. 8). Ninguém tem na testa uma tarja preta dizendo: tenho
de sofrer. Ao contrário, cada um possui um órgão, o coração, que precisa cada
vez mais ser transformado num relicário de amor e bondade.
Mais uma vez fomos prestar ajuda a uma irmã que estava voltando
para casa: o mundo espiritual. Enrico recebeu o pedido de socorro para
Leontina. Essa irmã estava hospitalizada em estado terminal de um câncer que a
consumia dia após dia e a família, mesmo convivendo com seu sofrimento,
acalentava a esperança de vê-la restabelecida. Partimos para o hospital. Leontina
era uma mulher de seus cinqüenta anos, mas antes da doença mais parecia ter
trinta, porque, vaidosa e bem cuidada, possuíra um corpo belo e saudável. Tinha
um casal de filhos que agora lhe dava muito carinho e dedicação. No quarto, as
flores compunham o ambiente, tudo muito limpo, dando à doente a tranqüilidade
necessária, onde vi muitos irmãos desencarnados orando em grande recolhimento.
— São os familiares de Leontina, Enrico?
— Alguns, Luiz, outros são seus amigos, a família espiritual que
veio buscá-la.
Nisso, entrou o médico encarnado. Examinou, examinou e disse aos
filhos:
— Hoje ela está bem melhor.
Olhei, intrigado, para os meus amigos. Enrico nada disse, apenas
sorriu, pois estava ocorrendo o desligamento. Os órgãos estavam enfraquecidos,
pois em quase todos eles a doença havia chegado. O corpo da nossa irmã mais
parecia uma máquina que, pouco a pouco, ia parando. Na parte material, só
estavam presentes a enfermeira da família e uma irmã de Leontina.
Quando a enfermeira se aproximou da doente, percebeu que sua respiração
era diminuta e logo pediu socorro. Enfermeiras, médicos, todos acorreram para
tentar salvá-la, mas ela apenas suspirou e, como uma sombra, seu perispírito
pairou sobre o corpo físico. Depois, amparada pelos técnicos, ela se libertou, chorando
de emoção. Notamos que seu perispírito, veste do espírito, estava tão doente
quanto o físico. Quando ela viu o pai, a mãe e a irmã, não se conteve,
abraçou-os dizendo:
— Oh! Deus, agora posso morrer em paz. A senhora sua mãe falou:
— Filha, a morte só existe para os que passam pelo mundo físico
praticando iniqüidades; o malvado que assassina, que destrói, que lesa, que
despreza os pobres, este sim, morre de remorsos.
— Mamãe, para onde me levam?
—Você está sendo socorrida pelos enfermeiros de Jesus. Será levada
para um hospital onde ficará até se sentir fortalecida.
— Mamãe, pelo amor de Deus, não agüento mais hospital, quero ficar
com você.
— Ficaremos juntas, prometo.
Coitados dos que julgam que tudo acaba com a morte, pensei.
Olhando a nossa irmã ao lado dos seus familiares, recordei da Parte
2a, Capítulo III, de O Livro dos Espíritos, Questão 155:
Como se opera a separação da alma e do corpo? "Rompidos
os laços que a retinham, ela se desprende."
a) — A separação se dá instantaneamente por brusca transição?
Haverá alguma linha de demarcação nitidamente traçada entre a vida
e a morte?
"Não; a alma se desprende gradualmente, não se escapa como um
pássaro cativo a que se restitua subitamente a liberdade.
Aqueles dois estados se tocam e confundem, de sorte que o Espírito
se solta pouco a pouco dos laços que o prendiam. Estes laços se desatam, não
se quebram."
Questão 160:
O Espírito se encontra imediatamente com os que conheceu na Terra
e que morreram antes dele?
"Sim, conforme a afeição que lhes votava e a que eles lhe consagravam.
Muitas vezes aqueles seus conhecidos o vêm receber à entrada do mundo dos Espíritos
e o ajudam a desligar-se das faixas da matéria. Encontra-se também com
muitos dos que conheceu e perdeu de vista durante a sua vida terrena. Vê os que
estão na erraticidade, como vê os encarnados e os vai visitar."
Quantos ensinamentos nos dá O Livro dos Espíritos] Estávamos
tão pensativos que Enrico nos chamou à realidade. Se a calma reinava na parte
espiritual, no mundo físico os filhos gritavam e choravam, e muitos amigos que
chegavam faziam o mesmo. Voltei a olhar o mundo espiritual e com surpresa pude
perceber que o desligamento total não se havia ainda completado. Leontina
estava ligada ainda ao físico, mesmo estando sendo socorrida. E lembrei-me da
resposta à questão 155: "Aqueles dois estados se tocam e confundem, de
sorte que o Espírito se solta pouco a pouco dos laços que o prendiam. Estes
laços se desatam, não se quebram. "
Sorri. Enrico perguntou-me:
— O que foi?
— Sabe, Enrico, quando falo nos meus livros que o corpo físico
está ligado ao perispírito por vários laços correspondentes a cada órgão e
plexos, alguns espíritas não acreditam. Se eles lerem a questão 155 de O
Livro dos Espíritos, nela está escrito: (...)"o Espírito se solta
pouco a pouco dos laços que o prendiam". Portanto, não é um laço só e sim
vários.
— Irmão Luiz Sérgio, agora vamos daqui sair para esperar Leontina
na Estação do Adeus.
— E essa choradeira, não irá desesperá-la?
— Não. Como podemos dizer a uma família que se despede de um ente
querido que não chore? A revolta prejudica, mas as lágrimas são o grito de
saudade e tristeza. Pedir para alguém não chorar é muita falta de piedade; o
que não se deve é demonstrar desespero, gritar revoltado, cair sobre o caixão, fazer
coisas contrárias ao equilíbrio. Mas chorar, mesmo alto, não prejudica ninguém.
— Irmão, e aquelas pessoas que desmaiam, gritam, arrancam os
cabelos, é certo?
— Certo não é, tudo o que é exagero choca e nos leva ao ridículo,
mas como podemos dizer a uma mãe, que está sofrendo pelo desencarne de um
filho, que não chore, que não sinta saudade? Dor é dor e só quem a está
sentindo sabe a sua intensidade.
— Irmão, então é errado dizermos a alguém para conformar-se, para
não chorar?
— Acho que é jogar palavras fora, Luiz. O consolo de um abraço é
mais significativo do que uma crítica em uma hora tão amarga.
— Enrico, você é demais!
Ele sorriu, meio sem jeito, e eu enlacei seu ombro. Os outros amigos
também sorriram. Fomos para a capela, onde os filhos choravam muito, mas
conformados. Os amigos, porém, dava pena ver o que faziam: conversavam sobre
política, jogos, mulheres e bebidas. Fumavam e falavam, falavam, mais parecia
uma festa. Na capela tinha de tudo, até comes e bebes.
Os que velavam o corpo estavam sendo bem alimentados. Não pude
deixar de sorrir: no quarto ao lado, feito para a família repousar, a comida andava
solta. Com isso, os espíritos que não gostam de sair do cemitério se apraziam
de lá ficar para saborear os alimentos. Um deles sentou-se perto de uma mulher
que comia, comia sem parar.
— Sempre que fico nervosa só a comida me acalma, dizia.
Se ela soubesse que cada vez que buscava o alimento estava alimentando
três espíritos que ainda julgam que a comida da Crosta é a melhor que
existe!... As bebidas faziam com que o olhar deles brilhasse.
— Irmãos, vocês ficam sempre aqui? perguntei, aproximando-me.
Olharam-me com desprezo:
— Você é mensageiro de Jesus e vai querer nos dizer que lá nas
colônias é melhor?
—Sou um discípulo do Cristo, e venho como irmão espiritual de
Leontina. Agora gostaria de saber se aqui nas capelas a comida é sempre farta
assim.
— Que nada, nos enterros dos pobres só sai é um cafezinho ou chá
de cidreira.
O outro disse:
—Detesto chá. Agora, bacana morto a gente se farta, é bebida das
finas e comida gostosa.
O terceiro falou:
— E tem a turma dos sanduíches, também gostamos muito.
— Às vezes a cervejinha corre solta, com salgadinhos e tudo. É a
glória! É a glória!
— E vocês acham certo ficar aqui em busca de migalhas?
— Não é isso, não, a gente também chora junto, faz parte do nosso
trabalho.
Despedi-me deles, não sem antes terem me oferecido um pedaço de
pizza calabresa.
— Mas vocês comem mesmo? indaguei.
— Claro, meu chapa! Mas ela come mais que nós — e apontou para a
nossa irmã que mal mastigava, engolindo tudo o que lhe era oferecido!
Voltei para junto dos outros e falei a Enrico:
— Gostei daqueles irmãos, o que podemos fazer por eles?
— Nesse trabalho que estamos realizando, viremos muitas vezes
aqui, e você, todas as vezes, poderá conversar com eles.
Hoje foi o primeiro passo.
—Desejo, e muito, ajudá-los. Deve ser triste, já desencarnado viver
ao lado dos companheiros encarnados. Sabe, Enrico, eles comem de tudo. Agora
vão para outra capela.
— Não só eles, vários ficam aqui desfrutando a companhia dos encarnados.
— Será, Enrico, que vai chegar a época em que os que comparecerem
a um enterro vão conscientizar-se de que o corpo necessita de respeito?
— No dia em que a Humanidade tiver Jesus no coração.
Enquanto ela não acreditar no Espiritismo, apenas cumprirá com as
obrigações sociais.
— É o que muitos fazem, vão até o cemitério cumprimentar os amigos,
por isso não têm um comportamento cristão, tratam os ditos mortos como se eles
já não existissem.
Bem ao nosso lado uma jovem atendeu ao telefone celular, rindo e
conversando como se estivesse em sua casa. Leontina às vezes se via diante do
corpo, era a expansão da sua casa mental que ia em busca dos familiares. Mas
quando deparava-se com as risadas e conversas, tentava apagar as lembranças.
— Enrico, sabemos que devemos esperar vinte e quatro horas para um
corpo ser enterrado, mas não acha que faz muito mal ao espírito esse
disse-que-disse que ocorre em quase todas as capelas?
— É a cultura deste país que faz com que os homens não se conscientizem
de que a hora do adeus é muito importante para os que ficam e para os que
partem.
O amigo Plácido perguntou:
— Mas sendo a "morte" a libertação, não é certo a
alegria nas capelas?
— Você já pensou, você vendo o seu corpo ali estirado, coberto de
flores, sabendo que "morreu" — a morte era o seu terror — e os que
ficam, que você vai morrer de saudades deles, dançando e festejando ao lado do
corpo que lhe pertenceu? respondi.
Ele não pôde deixar de sorrir, dizendo:
— Luiz, desde que ocorre a separação, o espírito não está nem aí
para o corpo inerte.
— Você é que pensa, Plácido. O espírito leva para o mundo espiritual
as últimas sensações do corpo físico e demora muitos dias para delas se
libertar. Voltemos a O Livro dos Espíritos, no comentário à resposta da
letra "a" da questão 155 e vejamos o que nos diz:
A observação demonstra que, no instante da morte, o desprendimento
do perispírito não se completa subitamente; que, ao contrário, se opera
gradualmente e com uma lentidão muito variável conforme os indivíduos. Em uns é
bastante rápido, podendo dizer-se que o momento da morte é mais ou menos o da libertação.
Em outros, naqueles sobretudo cuja vida foi toda material e sensual,
o desprendimento é muito menos rápido, durando algumas vezes dias, semanas e
até meses (...).
Como vemos, as capelas não são lugares de bate-papo nem de festa.
Ninguém sabe como está o espírito que deixa o corpo. Será que os espíritas
sabem dar o adeus como se deve dar?
Luiz Sérgio
NA HORA DO ADEUS
Psicografía: Irene Pacheco Machado
2a Edição • 1997
Nenhum comentário:
Postar um comentário