sábado, 21 de novembro de 2015

No grande desprendimento

No grande desprendimento

Livro: Voltei  Irmão Jacó & Francisco Cândido Xavier

Recordando as experiências do investigador De Rochas, identificava-me em singulares processos de desdobramento.
Recluso. Na impossibilidadede receber os amigos para conversações e entendimentos mais demorados, em várias ocasiões me vi fora do corpo exausto, buscando aproximar-me deles.
Nas últimas trinta horas, reconheci-me em posição mais estranha. Tive a idéia de que dois corações me batiam no peito. Um deles, o de carne em ritmo descompassado, quase a parar, como relógio sob indefinível perturbação, e o outro pulsava, mais equilibrado, mas profundo...
A visão comum alterava-se. Em determinados instantes, a luz invadia-me em clarões subitâneos, mas, por minutos de prolongada duração, cercava-me densa neblina.
O conforto da câmara de oxigênio não me subtraía as sensações de estranheza.
Observei que frio intenso veio ferir-me as extremidades. Não seria a integral extinção da vida corpórea? Procurei acalmar-me, orar intimamente e esperar. Após sincera rogativa a Jesus ara que me não desamparasse, comecei adivisar à esquerda a formação de um depósito de substância prateada, semelhante a gaze tenuíssima...
Não poderia fizer se era dia ou se era noite em torno de mim, tal o nevoeiro em que me sentia mergulhado, quando notei que duas mãos caridosas me submetiam a passes de grande corrente. À medida que se desdobravam, de alto a baixo, detendo-se com particularidade no tórax, diminuíam-se-me as impressões de angústia. Lembrei, com força, o Irmão Andrade, atribuindo-lhe o benefício, e implorei-lhe mentalmente se fizesse ouvir, ajudando-me.
Qual se estivesse sofrendo melindrosa intervenção cirúrgica, sob máscara pesada; ouvi alguém me confortar: Não se mexa! Silêncio! Silêncio!....
Conclui que o término da resistência orgânica era questão de minutos.
Não se estendeu o alívio, por muito tempo.
Passei a registrar sensações de esmagamento no peito.
As mãos do passista espiritual concentravam-se-me agora no cérebro.
Demoraram-se, quase duas horas, sob os contornos da cabeça. Suave sensação de bem-estar voltou a dominar-me, quando experimentei abalo indescritível na parte posterior do crânio. Não era uma pancada. Semelhava-se a um choque elétrico, de vastas proporções, no íntimo da substância cerebral. Aquelas mãos amorosas, por certo, haviam desfeito algum laço forte que me retinha ao corpo de carne...
Senti-me, no mesmo instante subjugado por energias devastadoras.
A que comparar o fenômeno?
A imagem mais aproximada é a de uma represa, cujas comportas fossem arrancadas repentinamente.
Vi-me diante de tudo o que eu havia sonhado, arquitetado e realizado na vida.
Insignificantes idéias que emitira, tanto quanto meus atos mínimos, desfilavam, absolutamente precisos, ante meus olhos fixos, como se me fossem revelados de roldão, por estranho poder, numa câmara ultra-rápida instalada no centro de mim.
Transformara-se-me o pensamento num filme cinematográfico misterioso e inopinadamente desenrolado, a desdobrar-se, com espantosa elasticidade, para seu criador assombrado, que era eu mesmo.
No trabalho comparativo a que era constrangido pelas circunstâncias, tive a idéia de que, até aquele momento, havia sido o construtor de um lago cujas águas crescentes se constituíam de meus pensamentos, palavras e atos e a cuja tona minha alma conduzia a seu talante o barco do desejo; agora, que as águas se transportavam comigo de uma região para outra; via-me no fundo, cercado de minhas próprias criações.
Não tenho, por enquanto, outro recurso verbal para definir a situação. Recordei o livro de Bozzano (Livro Depois da Morte),em que ele analisa o comportamento dos moribundos; entretanto, sou forçado a asseverar que todas as narrações que possuíamos, nesse sentido, comentam palidamente a realidade.
Observando-me relegado às próprias obras (por que não confessar?), senti-me sozinho e amedrontei-me. Ensforcei-me por gritar, implorando socorro, porém, os músculos não mais me obedeceram.
Busquei abrigar-me na prece, mas o poder de coordenação escapava-me.
Não conseguiria precisar se eu era um homem a morrer ou um náufrago a debater-se em substância desconhecida, sob extremo nevoeiro.
Naquele intraduzível conflito, lembrei mais insistentemente o dever de orar nas circunstâncias mais duras... Rememorei a passagem evangélica em que Jesus acalma a tempestade, perante os companheiros espavoridos, rogando ao Céu salvação e piedade...
Forçasdeauxíliodos nossos protetores espirituais, irmanadas à minha confiança, sustaram as perturbações. Braços vigorosos, não obstante invisíveis para mim, como que me reajustavam no leito. Aflição asfixiante, contudo, oprimia-me o íntimo. Ansiava por libertar-me. Chorava conturbado, jungido ao corpo desfalecente, quando tênue luz se fez perceptível ao meu olhar. Em meio do suor copioso lobriguei minha filha Marta a estender-me os braços. Estava linda como nunca. Intensa alegria transbordava-lhe do semblante calmo. Avançou, carinhosa, enlaçou-me o busto e falou-me, terna, aos ouvidos:
- Agora, paizinho, é necessário descansar.
Tentei movimentar os braços de modo a retribuir-lhe o gesto de amor, mas não pude ergue-los. Pareciam guardados sob uma tonelada de chumbo.
O pranto de júbilo e reconhecimento, porém, correu-me abundante dos olhos.
Quem era Marta, naquela hora, para mim? Minha filha ou minha mãe? Difícil responder. Sabia apenas que a presença dela representava o mundo diferente, em nova revelação. E entreguei-me, confiado, aos seus carinhos, experimentando felicidade impossível de descrever.
Amparado à Marta, intentei proclamar o júbilo que me dominava, fazendo-me ouvido em alta voz. Todavia, os membros jaziam inteiriçados e os órgãos da fala em descontrole.
Não tinha perfeito conhecimento da posição em que os familiares se moviam.
Meus olhos demoravam-se perturbados. Sensação de esmagamento percorria-me todo; no entanto, que pedir além daquela infinita ventura que o devotamente filial me proporcionava?
Tentei alinhar idéias a fim de agradecer a intervenção da filha querida; contudo, não consegui.
Percebendo-me as dificuldades; Marta afagou-me a fronte e falou, meiga: -Os nossos benfeitores desatam os últimos elos. Enquanto isto; façamos nossa oração.
Não me seria possível, naqueles minutos, enfileirar pensamentos e muito menos enunciar qualquer frase. Tinha a respiração opressa, como nos derradeiros dias de luta no corpo físico. Com alegria, no entanto, via a filha elevar-se no alto, repetindo, em voz pausada e comovedora as expressões do Salmo 23, ampliando-lhes o sentido:
- O Senhor é nosso Pastor; nada nos faltará. Deitar-nos faz em refúgio de esperança, guia-nos suavemente águas do repouso.  Refrigera-nos a alma, conduz-nos pelas veredas da justiça, na qual confiamos por amor ao seu nome.  Ainda que andemos pelo vale da sombra e da morte, não temeremos mal algum, porque Ele está conosco; a sua vontade e a sua vigilância nos consolam.  Prepara-nos mesa farta de bênçãos, ainda mesmo na presença dos inimigos que trazemos dentro de nós, unge-nos a cabeça de bom ânimo e o nosso coração transborda de júbilo.  Certamente que a bondade e a compaixão do Senhor nos seguirão em todos os dias da vida e habitaremos na sua Casa Divina, por longo tempo. Assim seja .
À medida que sua voz pronunciava o texto antigo, multiplicando-me as lágrimas abundantes e espontâneas, dores cruéis me assaltavam a região torácica.
Vim saber, mais tarde, que aqueles sofrimentos provinham da extração de resíduos fluídicos que ainda me enlaçavam à zona do coração.
Finda a prece, que ouvi sob indizível angústia, percebendo a manifesta intenção da filha que assim procedia buscando isolar-me o pensamento da intervenção a que me achava submetido, notei que as dores se faziam menos rudes. Ela permaneceu amorosamente inclinada para mim; por mais de uma hora, silêncio.
Temia falar, provocando fenômenos desagradáveis, e, ao que me pareceu, Marta me partilhava os receios.
Um momento chegou, entretanto, no qual a respiração se fez equilibrada e verifiquei que o coração me batia, uniforme e regular, no peito.
Através do olhar, supliquei à filha,sem palavras, reforçasse o socorro que minha situação estava exigindo.
Via-a movimentar cuidadosamente o braço direito e, em seguida, passar a destra repetidamente sobre a minha cabeça exausta. Reparei que me aplicava força espiritual que eu ainda não podia compreender.
Mais alguns minutos decorridos e percebi que o poder de orar me felicitava de novo. Encadeava os pensamentos sem maiores dificuldades e, na convicção de que poderia tentar a prece com êxito, improvisei sincera súplica.
O trabalho foi bem sucedido. A harmonia geral começou a refazer-me, embora a fraqueza extrema que me possuía.
Notei que, de Marta para mi, vinham fagulhas minúsculas de luz, em porção imensa, a envolverem-me todo, ao passo que me via agora cercado de atmosfera fracamente iluminada em tom de laranja.
A respiração processava-se normalmente. A carência de ar desaparecera. Meus pulmões revelavam-se robustecidos, como por encanto, e tanto bem me faziam as inalações prolongadas de oxigênio que tive a impressão de haurir alimento invisível, do ar leve e puro.
Restabelecendo-se-me a força orgânica, fortificava-se a potência visual.
A claridade alaranjada que me revestia casava-se à luz comum.
A melhora experimentada, porém, não ia a ponto de restaurar-me a disposição de falar. O abatimento era ainda insuperável.
Assombrado, vi-me em duplicata.
Eu, que tanta vez exortara os desencarnados a contemplarem os despojos de que já se haviam desvencilhado, fixei meu corpo a enrijecer-se, num misto de espanto e amargura.
Fitei minha filha, com suplicante humildade,imitando o gesto da criança medrosa. Encontrava-me prostrado, vencido. Não me assistia qualquer razão de revolta; contudo, se possível, desejaria afastar-me. A contemplação do corpo imóvel, não obstante aguçar-me o propósito de observar e aprender, era-me aflitiva. O cadáver perturbava-me com as sugestões da morte, impunha reflexão desagradável e amarga. À distância dele, provavelmente a idéia de vida e eternidade prevaleceria, dentro de mim.
Marta entendeu o que eu não podia dizer. Fez-se mais terna e explicou-me: -Tenha calma, papai. Os laços não se desfizeram totalmente. Precisamos paciência por mais algumas horas.
Alongando o raio de meu olhar, verifiquei a existência de prateado fio, ligando- me o novo organismo à cabeça imobilizada.
Torturante emoção apossou-se de mim.
Eu seria o cadáver ou o cadáver seria eu? Por intermédio de que boca pretendia falar? Da que se fechara no corpo ou da que me serviria agora? Através de que ouvidos assinalava as palavras de Marta? Intentando ver pelos olhos mortos,senti-me atirado novamente a espesso nevoeiro.
Assustado, soergui-me mentalmente.
Aquele grilhão tênue a unir-me com os despojos era bem um fio de forças vivas, jungindo-me à matéria densa, semelhando-se ao cordão umbilical que liga o nascituro ao seio feminino. Fitando, então, o corpo repousado e inerte, simbolizando templo materno ao meu ser que ressurgia na espiritualidade, recordei, certamente inspirado pelos amigos que ali me socorriam, a enormidade dos meus débitos para com a carcaça que me retivera no Planeta por extensos e abençoados anos. Devia-lhe à cooperação precioso amontoado de conhecimentos. Cabia-me vencer o mal-estar e a repugnância.
Tranqüilizei-me. Comecei a considerar o corpo, mirrado e frio, como valioso companheiro do qual me afastaria em definitivo. Enquanto perdurou a nossa entrosagem, beneficiara-me ao contacto da luta humana. Junto dele, recolhera bênçãos inextinguíveis. Sem ele, por que processos continuariam o aprendizado? Fixei- o, enternecido, mas, aumentando o meu interesse pela organização de carne, imóvel, incapaz de separar emoções e seleciona-las, afundei-me nas impressões de angústia.
Minhas energias pareciam retransferir-se, aceleradamente, ao envoltório abandonado.
Insuportável constrangimento martirizava-me. Percebi os conflitos da carne desgovernada. A diferença apresentada pelos órgãos impunha-me terrível desagrado.
Registrando-me as dificuldades; Marta informou bondosamente: - Lembre-se, paizinho, da necessidade de concentração na prece. Não divague.
Esqueça a experiência que terminou, sustentando a mente em oração.
A custo, retornei a mim mesmo e me mantive no recolhimento necessário.
Meu objetivo, agora, era não pensar.
Avançava-se no futuro, estranhas vertigens me assediavam; se me demorava analisando o veículo físico, vigoroso e inesperado impulso me reconduzia para ele.
Que fazer de mim, reduzido a minúsculo ponto sensível entre duas esferas? Aquietei-me e orei.
Rogando a Jesus me auxiliasse a encontrar o melhor caminho, observei que minha capacidade visual se dilatava. Curiosos fenômenos de óptica afetavam-me a retina hesitante. Alterar-se-me a noção de perspectiva. A imagem do ambiente parecia penetrar-me. Objetos e luzes permaneciam dentro de mim ou jaziam em derredor? Dentro de semelhante indecisão, divisei duas figuras ladeando a filha dedicada.
Centralizei, quanto possível, o propósito de ver, mais exatamente, e tive o esforço compensado.
Ambos os presentes se destacaram nítidos.
Que alegria me banhou o ser! Numa deles, identifiquei sem obstáculos, o venerável Bezerra de Menezes e , no outro, adivinhei o benemérito Irmão Andrade. Pelo sorriso de compreensão que me endereçaram, reconheci que os dois me haviam notado a surpresa indescritível.
Todavia, meu júbilo do primeiro instante foi substituído pela timidez. Enquanto nos debatemos na lida material, quase nunca nos recordamos de que somos seguidos pelo testemunho do plano espiritual, nos mínimos atos da existência. Falamos, com referência aos Espíritos, com a desenvoltura das crianças que se reportam aos pais a propósito de insignificantes brinquedos. Senti-me repentinamente envergonhado. Quantos sacrifícios foram exigidos daqueles abnegados amigos?
Apesar do natural acanhamento que a presença deles me infligia, tudo fiz por levantar-me, de modo a recebe-los com a veneração que mereciam. Tentei, porém, debalde erguer-me.
Percebendo-me as intenções, abeiraram-se de mim.
Cumprimentaram-me com palavras confortadoras de boas-vindas.
Com gentilezas, explicou-me Bezerra que o processo liberatório corria normal, que me não preocupasse com as delongas, porque a existência que eu desfrutara fora dilatada e ativa.
Não era possível  disse, bondoso  efetuar a separação de organismo espiritual com maior rapidez. Esclareceu também que o ambiente doméstico estava impregnado de certa substância que classificou por fluídos gravitantes, desfavorecendo-me a libertação.
Mais tarde vim a perceber que os objetos de nosso uso pessoal emitem radiações que se casam às nossas ondas magnéticas, criando elementos de ligação entre eles e nós, reclamando-se muito desapego de nossa parte, a fim de que não nos prendam ou perturbem.
Após instruir-me, benévolo, recomendou-me Bezerra esquecesse o retraimento em que me refugiara, confiando-me a pensamentos mais elevados, de maneira a colaborar com ele para que me subtraísse ao decúbito dorsal.
Pus-me a refletir na infinita bondade de Jesus, enquanto o dedicado amigo me aplicava passes, projetando sobre mim, com as mãos dadivosas, abundantes jatos de luz.
Ao término da operação, acentuara-se-me a resistência.
A rigor, não pude levantar-me, nem falar. Ambos os benfeitores, porém, seguidos de Marta, que nos observava com visíveis mostras de contentamento, retiram-me do leito, determinando que me amparasse a eles para uma jornada de repouso.
- É necessário sair de algum modo  acentuou Bezerra, em tom grave -, conduzi-lo-emos à praia. As virações marítimas serão portadoras de grande bem ao reajustamento geral.
Abracei-me aos devotados obreiros da caridade, com esforço, e, não obstante verificar que o derradeiro laço ainda me atava as vísceras em descontrole, afastei-me da zona doméstica, reparando que eu era por eles rapidamente conduzido à beira-mar.

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