quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Chico Xavier aos 34 anos


Era uma vez um moço ingênuo e feliz, vivendo numa cidadezinha ingênua e feliz, perto de Belo Horizonte. O moço se chamava Francisco Cândido Xavier (foto) e não desmentia o nome. A cidadezinha, Pedro Leopoldo, arrastava suas horas de doce paz, entre as missas de domingo e a chegada do trem da capital. Não se sabe como, numa noite ou num dia, Chico se mostrou inquieto e desandou a escrever.
Terminando, disse, apenas, à família assustada: –
“Não fui eu. Alguém me empurrava a mão”.
Assim se inicia uma reportagem histórica assinada por David Nasser, uma das glórias do jornalismo brasileiro, publicada na revista “O Cruzeiro” de 12 de agosto de 1944, que recuperamos por intermédio da internet graças ao site www.memoriaviva.digi.com.br/ocruzeiro. Chico Xavier contava na ocasião 34 anos de idade e viveria até meados de 2002, ano em que desencarnou no mesmo dia em que a seleção do Brasil se sagrou pentacampeã de futebol.
Por ocasião da reportagem, fazia 12 anos que Chico havia publicado sua primeira obra, “Parnaso de Além Túmulo”, e o total de sua produção psicográfica não passava de 20 livros.
“Os Mensageiros”, de André Luiz, fora a última obra publicada até então, à qual se seguiram, de 1945 a 2002, quase 400 títulos. Iniciara-se então o célebre processo movido por familiares do escritor Humberto de Campos, que passou, a partir do ano seguinte, a valer-se de um pseudônimo (Irmão X) para assinar suas obras.
O processo, que trouxe muitas preocupações e acerbos sofrimentos ao médium de Pedro Leopoldo, fez com que seu nome e seu trabalho ganhassem dimensão nacional, numa época em que a televisão não fazia ainda parte dos meios de comunicação do País.

Chico Xavier, detetive do Além

Texto de David Nasser
e foto de Jean Manzon


Era uma vez um moço ingênuo e feliz, vivendo numa cidadezinha ingênua e feliz, perto de Belo Horizonte.
O moço se chamava Francisco Cândido Xavier (foto) e não desmentia o nome. A cidadezinha, Pedro Leopoldo, arrastava suas horas de doce paz, entre as missas de domingo e a chegada do trem da capital. Não se sabe como, numa noite ou num dia, Chico se mostrou inquieto e desandou a escrever.
Terminando, disse, apenas, à família assustada: “Não fui eu. Alguém me empurrava a mão”.
Desce esse dia ou essa noite, Chico Xavier perdeu o sossego e também o de sua cidade. Turistas chegavam, atraídos pela fama do moço profeta.
Pedro Leopoldo ia crescendo e Chico Xavier ia ficando importante. Nunca mais teve paz. Nunca mais pôde sair pela rua, sem ouvir um pedido de saúde ou uma prece de gratidão. Se ao menos fosse só isto. Era mais, muito mais.
Eram os curiosos do Rio, de São Paulo e de Belo Horizonte, pedindo consultas ou detalhes pelo telefone interurbano. Era a legião de repórteres em busca de novas mensagens.
O representante da editora insistindo por outros livros. Os centros espíritas de todo o país solicitando pormenores. Uma vida infernal, agitada, barulhenta sacudia o pobre rapaz.
As luzes dos lampiões da cidadezinha nunca mais dormiram sem a presença de um estrangeiro, rondando pelas ruas dantes tão sossegadas.
Fixaremos, precisamente, a violenta mudança de vida de Chico Xavier e da cidade de Pedro Leopoldo.
Não nos interessa, embora pareça estranho, o médium Chico Xavier, mas a sua vida. Os seus trabalhos psicografados – ou não psicografados – já foram assunto de milhares de histórias, divulgadas desde 1935. Se são reais ou forjadas, decidam os cientistas. Se ele é inocente ou culpado dirão os juízes.
Se ele é casto, instruído, bondoso, calmo, diremos nós. Porque não somos detetives do além.
Se os espíritos nos ouvem, eles sabem que não acreditamos em suas mensagens, nem desacreditamos de suas virtudes literárias. A verdade é que não temos a bravura indispensável para avançar sobre o terreno pantanoso do outro mundo e analisar suas reais ou irreais comunicações utilizando aparelhos de escuta com este pálido e sensitivo Chico Cândido Xavier. Desde que saímos daqui, levávamos a inabalável determinação de fazer uma reportagem sem complicações, apesar do assunto em sua natureza extraterrena mostrar-se absolutamente complicado. Assim é que o senhor, amigo, chegará ao fim destas linhas sem obter a certeza que há tanto tempo procura: “É Chico Xavier um impostor ou não é?” E dirá: – “Não conseguiram desvendar o mistério!”
Sim, o mistério continuará por muito tempo. Eternamente. E Chico Xavier morrerá, sem revelar o segredo de sua extraordinária habilidade ao escrever de olhos fechados, se é mágico, ou de seu fantástico virtuosismo, ao chamar, além das fronteiras da vida, as almas dos imortais, fazendo-os recordar os velhos tempos da Academia. Nossa intenção é mostrar o homem. Sem o espírito dentro de si, nos momentos vulgares, Chico Xavier é adorável, cândido, maneiroso, humilde, um anjo de criatura. A frase de uma vizinha define melhor: – “Sabe, moço? O Chico é um amor”. Justamente desse tipo desconhecido, da parte anônima de sua devassada vida, é que tratamos, na hora e meia que permanecemos em Pedro Leopoldo.
Para começar, diremos que Chico nunca teve uma namorada.
O tempo de viagem de Belo Horizonte a Pedro Leopoldo não vai além de hora e meia. A meio caminho, encontramos a fazenda federal onde Chico Xavier é datilógrafo. O motorista não quer entrar. – “Aí, não. Até os zebus são atuados”. O diretor, Rômulo, está na horta, sozinho.
Ele nos dará, talvez, esclarecimentos sobre a vida de Chico e, quem sabe, facilitará o encontro com o sensitivo. Ouve o pedido. Depois, lentamente, abana a cabeça e o seu “não” é inflexível, desde o primeiro minuto. Alega um milhão de coisas. Que Chico anda cansado e precisa repousar. Um de nós lembra a possibilidade dele, diretor, dar umas férias a Chico. – “O Chico funcionário nada tem a ver com o outro Chico”. Apresentadas as despedidas, ele adverte: – “Não creio que será possível aos senhores um encontro com ele. Creio que vão esperar até sexta-feira”.
Voltamos a deslizar pela estrada, neste sábado negro. A cidade aparece depois de uma curva. –
“Onde fica a casa do Chico Xavier?”
O menino aponta a igreja. –
“Ali, na rua da matriz. Ele mora com a família”. Encontraríamos, em várias oportunidades, a mesma designação do pessoal do município: ele.
Todos apontavam Chico, sem recorrer ao nome. Ele só podia ser ele. –
“Minha irmã foi curada por ele”.
Ei-lo aqui, diante de nós. Veio a pé da fazenda e em sua companhia um senhor do Rio, que algumas vezes vem passar semanas com o médium.
– “Gosto de falar com ele. É um rapaz de cultura. Discute vários assuntos, lê um pouco de inglês e de francês. Devora os livros com fúria. Trouxe-lhe, há dias, “O homem, esse desconhecido” e ele não gastou mais de quatro horas e meia para ler o volume gordo. É um prazer para ele. Seu único amor é o espiritismo”.
Chico, perto de nós, não está ouvindo a palestra. Conversa com Jean Manzon. Devemos esclarecer que não dissemos qual a organização jornalística em que trabalhávamos.
Queríamos ver se o espírito adivinhava. Não houve oportunidade.
Chico parece ser um bom sujeito.
Suas ações, mesmo fora do terreno religioso propriamente dito, são ações que o recomendam como alma pura e de nobres sentimentos.
Vão dizer os espíritas, que é natural: todo o espírita dever ser assim.
Sei de um que não teve dúvida em abandonar a esposa, o lar, sete filhos, um dos quais doente do pulmão.
– “Na rua, entre seus irmãos de seita, – disse-me um dos filhos – ele se mostrava esplêndido, generoso, cordial. Em casa, por pouco não botava fogo nas camas, à noite. Parecia um verdadeiro demônio. Guardava até alface no cofre-forte”.
Já o Chico não é assim. Sua nobreza de caráter principia em casa.
Todos os seus irmãos e irmãs louvam a sua generosa e invariável linha de conduta, protegendo-os, hora a hora, dia a dia, através dos anos, trabalhando como um mouro. Um de seus sobrinhos sofre de paralisia infantil. Atirado a um berço, chora eternamente. Somente o Chico vai lá, fazer companhia ao garoto, às vezes uma noite inteira.
– Chico!
– Que é meu senhor?
– Você lê muito?
– Não. Só revistas e jornais.
– O outro disse...
– Disse o quê?
– Nada.
Ele nos olha, surpreso, quando a pergunta, como um busca-pé, sai correndo pela sala:
– Você, não pensa em se casar, Chico?
– Eu, casar?
(Dá uma gargalhada)
– Claro que não.
– Não namora?
– Nunca.
– Por quê?
– Não há razões.
Não gosto.
Tenho outras preocupações.
Ora, eu namorando... Tinha graça...
– Chico...
– Que é?
– É verdade que o padre desafiou você para um duelo verbal?
– Ele disse pra eu ir à igreja discutir.
Não é lugar próprio.
– Você gosta do padre, Chico? E ele, o ingênuo e feliz Chico, respondeu:
– Ué, eu gosto do padre, mas ele não gosta de mim.
– Chico...
– Que é?
– Onde estão suas mensagens?
– Um irmão levou tudo, em vista de tantas complicações.
– Você vai ao Rio?
– Até agora, nada resolvemos.
Possivelmente, mandarei uma procuração.
Numa estante, os livros de Chico. Versos de Guerra Junqueiro, Tolstoi e uma porção de autores mortos. Na sala do lado está a mesa onde ele recebe as mensagens. Uma papelada branca, pronta para ser coberta pelas mensagens do outro mundo. Sexta-feira houve mais uma sessão, desta vez presidida pelo chefe do executivo municipal. Humberto de Campos não compareceu mas o Emmanuel, guia de Chico, lá estava.
Quem é Emmanuel? Um romano que existiu na mesma época de Jesus e conta um mundo de coisas interessantes sobre a Terra, naqueles tempos de há dois mil anos.
– Ele dita?
– Vou psicografando as mensagens.
Há outros médiuns, como um norte-americano, que ouve as vozes dos espíritos tão alto que os presentes também escutam. Eu ouço. Os outros, que estão perto, não.
– Chico...
– Que é?
– Já teve oportunidade de falar com espírito de homens célebres?
– Homens célebres?
– Napoleão, para um exemplo, já falou consigo?
– Que eu saiba, não. Os assuntos bélicos não são freqüentes, nas mensagens que recebo do além. Há seis anos, entretanto, meu guia Emmanuel previu os principais acontecimentos que hoje revolucionam a Terra. Ele disse: – “A vitória da força é fictícia”.
O cavalheiro do Rio acode:
– E o próprio Chico, meses antes, previu a queda da Itália. Ele disse, categoricamente, que a Itália seria a primeira a cair. E a Itália foi a primeira a cair.
Pedro Leopoldo é a cidadezinha de uma rua grande e uma porção de ruas pequenas, convergindo para ela como servos humildes do rio principal.
A casa de Chico é uma das melhores do lugar. Três quartos, sala e cozinha. O banheiro é lá fora, no fundo do quintal, ao lado do galinheiro.
Chico se levanta de madrugada e vai dar milho às galinhas.
Depois, sua irmã solteira faz o café, que ele toma com pão dormido, porque o padeiro ainda não chegou.
Apanha a pasta de documentos da fazenda federal, e vai andando pela estrada, ainda coberta pela neblina.
Volta para almoçar às onze horas.
O expediente se encerra às dezoito horas, mas Chico, nestes dias de maior trabalho, faz serão. Sua vida é frugal. – “Quero que compreendam o seguinte: não vivo das mensagens de além-túmulo. Tenho necessidade de trabalhar para sustentar minha família. Se quase me dedico inteiramente a receber as comunicações, ainda se entende. O pior, entretanto, é a onda de gente que vem do Rio, de São Paulo e de todos os Estados”.
– Peregrinos?
– Mais ou menos. Não posso deixar de recebê-los, pois fico pensando que vieram de longe e necessitam de consolo. Isto leva tempo, toma tempo. Como se não bastassem essas preocupações, o telefone interurbano não pára dia e noite. –
“Chico, Rio está chamando... Chico, Belo Horizonte está chamando... Chico, São Paulo está chamando... Chico, Cachoeira está chamando...”
Evito atender, mesmo constrangido.
Meu Deus! Eu não quero nada, senão a paz dos tempos antigos, o silêncio de outrora. Quero ser de novo aquele Chico sossegado e tranqüilo que apenas se preocupava com as coisas simples...
– Impossível a viagem de volta...
– Impossível? Não, não é impossível.
Eu voltarei a ser aquele sossegado Chico. Não tenha dúvida.
O repórter imagina, a essa altura, que ele acredita na possibilidade de suas comunicações com o além serem repentinamente suspensas. Vai perguntar ao Chico, mas uma senhora de cor negra entra na sala, carregando um benjamim de olhos assustados.
– “Trago para o senhor, Seu Chico...”
Ele segura com trinta mãos, cheio de cuidados, o bebê e o bebê faz um berreiro dos diabos, agita as pernas, sacode as pernas dentro da prisão dos braços de Chico. Ele sorri e devolve o menino à mãe.
– Meu sobrinho – explica o profeta Chico – é nervoso e fica deste jeito. Sabe por quê? Ele sofre de paralisia infantil.
– Não tratam dele?
– Não temos recursos. Já deixei claro que não recebo um centavo pelas edições dos livros que me chegam do além. Assino um documento autorizando a livraria da Federação Espírita Brasileira a editá-los e, somente após ficarem impressos, recebo uns cinco ou dez exemplares, para dar aos amigos.
Vamos atravessando a sala e entramos num dos quartos. Na parede, prateleiras repletas de livros. Remédios à base de homeopatia, que Chico recomenda. Não sei por que os espíritos manifestam estranha aversão pela alopatia e suas drogas, receitando sempre combinações homeopáticas. Perto dos vidros, um armário cheio de livros. As obras de guerra contra a Santa Sé, assinadas por Guerra Junqueiro, ainda em vida. Os livros de Flammarion e de Allan Kardec, mas não os psicografados, misturados com volumes de propaganda anticlerical. Na parede, dependurado, um velho pandeiro.
– Quem toca pandeiro nesta casa?
Chico sorri o sorriso beatífico e diz que não é ele.
– Alguns espíritos?
O sorriso beatífico desaparece.
– Os espíritos não tocam pandeiro.
Saímos para a rua, hoje, sábado movimentado. O povo de Pedro Leopoldo passeia diante da Igreja que domina de forma esquisita a casa do humilde psicógrafo que Clementino de Alencar, certo dia, foi roubar de sua vida serena há dez anos. Hoje, Pedro Leopoldo é a Jerusalém do credo de Kardec. Já tem hotel e telefone. O povo de lá, por estranho que possa parecer a quem não conhece pessoalmente o nosso amigo Chico, revela invariável amizade.
Será orgulho pela celebridade que ele deu ao município? Sim, porque antes de Chico, Pedro Leopoldo nem existia nos mapas de Minas Gerais. Gostam dele, de seus modos, de sua cara asiática, onde um dos olhos empalideceu subitamente, como um farol apagado em pleno caminho da luz. A cidade tem uns treze mil habitantes, contadas as aldeias próximas, mas, espíritas, uns quatro ou cinco. Todos apreciam Chico, gregos e troianos. Gostam, mas preferem não rezar o seu catecismo. Ele não se importa. Não procura convencer ninguém à força de seu estranho e discutido poder.
Quando a carta precatória, intimando-o a depor, chegou a Pedro Leopoldo, Chico leu devagarinho e abanou a cabeça. – “Eu não posso mandar uma intimação judicial às almas!” E não deu mais importância ao caso.
Até à volta, sereno Chico. De todas as pavorosas complicações, você é o menos culpado. Parece uma caixa de fósforo num mar bravio.
Uma velha beata de Pedro Leopoldo me disse que isto é castigo:
– “Castigo, sim, nhô moço...
Antão, ele telefona pro inferno e manda chamar os espíritos e depois num quer se aborrecer?”
Já o trombonista de Pedro Leopoldo deve pensar diferente: –
“Por que será que o Chico só sabe receber mensagens escritas? Por que não recebe músicas de Beethoven, de Chopin, de Carlos Gomes?”
Ele, o moço amável de Pedro Leopoldo, não dá maior atenção aos comentários e vai levando como pode a sua vida. É pena, entretanto, que ele não tenha as qualidades artísticas que vão além do terreno literário. Se fosse assim, Pedro Leopoldo teria, senhores, não apenas o psicógrafo Chico, mas também o músico Chico, o pintor Chico, o profeta Chico. Isto mesmo: o profeta Chico.
(Reportagem publicada originalmente em “O Cruzeiro” de 12 de agosto de 1944, recuperada via internet por meio do site www.memoriaviva.digi.com.br/ocruzeiro. Chico Xavier contava na ocasião 34 anos de idade. Sua desencarnação se deu em 2002, no dia em que o Brasil se sagrou pentacampeão de futebol ao vencer a seleção da Alemanha por 2 a 0.)

O IMORTAL
JORNAL DE DIVULGAÇÃO ESPÍRITA
Diretor Responsável: Hugo Gonçalves
Ano 53 Nº 623 Janeiro de 2006

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