Era uma vez um moço ingênuo e feliz, vivendo numa
cidadezinha ingênua e feliz, perto de Belo Horizonte. O moço se chamava
Francisco Cândido Xavier (foto) e não desmentia o nome. A cidadezinha,
Pedro Leopoldo, arrastava suas horas de doce paz, entre as missas de domingo e
a chegada do trem da capital. Não se sabe como, numa noite ou num dia, Chico se
mostrou inquieto e desandou a escrever.
Terminando, disse, apenas, à família assustada: –
“Não fui eu. Alguém me empurrava a mão”.
Assim se inicia uma reportagem histórica assinada por David
Nasser, uma das glórias do jornalismo brasileiro, publicada na revista “O
Cruzeiro” de 12 de agosto de 1944, que recuperamos por intermédio da internet
graças ao site www.memoriaviva.digi.com.br/ocruzeiro.
Chico Xavier contava na ocasião 34 anos de idade e viveria até meados de 2002,
ano em que desencarnou no mesmo dia em que a seleção do Brasil se sagrou
pentacampeã de futebol.
Por ocasião da reportagem, fazia 12 anos que Chico havia
publicado sua primeira obra, “Parnaso de Além Túmulo”, e o total de sua
produção psicográfica não passava de 20 livros.
“Os Mensageiros”, de André Luiz, fora a última obra publicada
até então, à qual se seguiram, de 1945 a 2002, quase 400 títulos. Iniciara-se
então o célebre processo movido por familiares do escritor Humberto de Campos,
que passou, a partir do ano seguinte, a valer-se de um pseudônimo (Irmão X)
para assinar suas obras.
O processo, que trouxe muitas preocupações e acerbos sofrimentos
ao médium de Pedro Leopoldo, fez com que seu nome e seu trabalho ganhassem dimensão
nacional, numa época em que a televisão não fazia ainda parte dos meios de
comunicação do País.
Chico
Xavier, detetive do Além
Texto de David
Nasser
e foto de Jean Manzon
Era uma vez um moço ingênuo e feliz, vivendo numa
cidadezinha ingênua e feliz, perto de Belo Horizonte.
O moço se chamava Francisco Cândido Xavier (foto) e
não desmentia o nome. A cidadezinha, Pedro Leopoldo, arrastava suas horas de
doce paz, entre as missas de domingo e a chegada do trem da capital. Não se
sabe como, numa noite ou num dia, Chico se mostrou inquieto e desandou a escrever.
Terminando, disse, apenas, à família assustada: “Não fui eu.
Alguém me empurrava a mão”.
Desce esse dia ou essa noite, Chico Xavier perdeu o sossego
e também o de sua cidade. Turistas chegavam, atraídos pela fama do moço profeta.
Pedro Leopoldo ia crescendo e Chico Xavier ia ficando importante.
Nunca mais teve paz. Nunca mais pôde sair pela rua, sem ouvir um pedido de
saúde ou uma prece de gratidão. Se ao menos fosse só isto. Era mais, muito
mais.
Eram os curiosos do Rio, de São Paulo e de Belo Horizonte,
pedindo consultas ou detalhes pelo telefone interurbano. Era a legião de repórteres
em busca de novas mensagens.
O representante da editora insistindo por outros livros. Os centros
espíritas de todo o país solicitando pormenores. Uma vida infernal, agitada,
barulhenta sacudia o pobre rapaz.
As luzes dos lampiões da cidadezinha nunca mais dormiram sem
a presença de um estrangeiro, rondando pelas ruas dantes tão sossegadas.
Fixaremos, precisamente, a violenta mudança de vida de Chico
Xavier e da cidade de Pedro Leopoldo.
Não nos interessa, embora pareça estranho, o médium Chico Xavier,
mas a sua vida. Os seus trabalhos psicografados – ou não psicografados – já
foram assunto de milhares de histórias, divulgadas desde 1935. Se são reais ou
forjadas, decidam os cientistas. Se ele é inocente ou culpado dirão os juízes.
Se ele é casto, instruído, bondoso, calmo, diremos nós.
Porque não somos detetives do além.
Se os espíritos nos ouvem, eles sabem que não acreditamos em
suas mensagens, nem desacreditamos de suas virtudes literárias. A verdade é que
não temos a bravura indispensável para avançar sobre o terreno pantanoso do
outro mundo e analisar suas reais ou irreais comunicações utilizando aparelhos
de escuta com este pálido e sensitivo Chico Cândido Xavier. Desde que saímos daqui,
levávamos a inabalável determinação de fazer uma reportagem sem complicações,
apesar do assunto em sua natureza extraterrena mostrar-se absolutamente complicado.
Assim é que o senhor, amigo, chegará ao fim destas linhas sem obter a certeza
que há tanto tempo procura: “É Chico Xavier um impostor ou não é?” E dirá: – “Não
conseguiram desvendar o mistério!”
Sim, o mistério continuará por muito tempo. Eternamente. E
Chico Xavier morrerá, sem revelar o segredo de sua extraordinária habilidade ao
escrever de olhos fechados, se é mágico, ou de seu fantástico virtuosismo, ao
chamar, além das fronteiras da vida, as almas dos imortais, fazendo-os recordar
os velhos tempos da Academia. Nossa intenção é mostrar o homem. Sem o espírito
dentro de si, nos momentos vulgares, Chico Xavier é adorável, cândido,
maneiroso, humilde, um anjo de criatura. A frase de uma vizinha define melhor: –
“Sabe, moço? O Chico é um amor”. Justamente desse tipo desconhecido, da parte
anônima de sua devassada vida, é que tratamos, na hora e meia que permanecemos
em Pedro Leopoldo.
Para começar, diremos que Chico nunca teve uma namorada.
O tempo de viagem de Belo Horizonte a Pedro Leopoldo não vai
além de hora e meia. A meio caminho, encontramos a fazenda federal onde Chico
Xavier é datilógrafo. O motorista não quer entrar. – “Aí, não. Até os zebus são
atuados”. O diretor, Rômulo, está na horta, sozinho.
Ele nos dará, talvez, esclarecimentos sobre a vida de Chico
e, quem sabe, facilitará o encontro com o sensitivo. Ouve o pedido. Depois, lentamente,
abana a cabeça e o seu “não” é inflexível, desde o primeiro minuto. Alega um
milhão de coisas. Que Chico anda cansado e precisa repousar. Um de nós lembra a
possibilidade dele, diretor, dar umas férias a Chico. – “O Chico funcionário
nada tem a ver com o outro Chico”. Apresentadas as despedidas, ele adverte: – “Não
creio que será possível aos senhores um encontro com ele. Creio que vão esperar
até sexta-feira”.
Voltamos a deslizar pela estrada, neste sábado negro. A
cidade aparece depois de uma curva. –
“Onde fica a casa do Chico Xavier?”
O menino aponta a igreja. –
“Ali, na rua da matriz. Ele mora com a família”.
Encontraríamos, em várias oportunidades, a mesma designação do pessoal do
município: ele.
Todos apontavam Chico, sem recorrer ao nome. Ele só podia
ser ele. –
“Minha irmã foi curada por ele”.
Ei-lo aqui, diante de nós. Veio a pé da fazenda e em sua
companhia um senhor do Rio, que algumas vezes vem passar semanas com o médium.
– “Gosto de falar com ele. É um rapaz de cultura. Discute
vários assuntos, lê um pouco de inglês e de francês. Devora os livros com fúria.
Trouxe-lhe, há dias, “O homem, esse desconhecido” e ele não gastou mais de
quatro horas e meia para ler o volume gordo. É um prazer para ele. Seu único
amor é o espiritismo”.
Chico, perto de nós, não está ouvindo a palestra. Conversa
com Jean Manzon. Devemos esclarecer que não dissemos qual a organização jornalística
em que trabalhávamos.
Queríamos ver se o espírito adivinhava. Não houve
oportunidade.
Chico parece ser um bom sujeito.
Suas ações, mesmo fora do terreno religioso propriamente
dito, são ações que o recomendam como alma pura e de nobres sentimentos.
Vão dizer os espíritas, que é natural: todo o espírita dever
ser assim.
Sei de um que não teve dúvida em abandonar a esposa, o lar,
sete filhos, um dos quais doente do pulmão.
– “Na rua, entre seus irmãos de seita, – disse-me um dos
filhos – ele se mostrava esplêndido, generoso, cordial. Em casa, por pouco não botava
fogo nas camas, à noite. Parecia um verdadeiro demônio. Guardava até alface no
cofre-forte”.
Já o Chico não é assim. Sua nobreza de caráter principia em
casa.
Todos os seus irmãos e irmãs louvam a sua generosa e invariável
linha de conduta, protegendo-os, hora a hora, dia a dia, através dos anos, trabalhando
como um mouro. Um de seus sobrinhos sofre de paralisia infantil. Atirado a um
berço, chora eternamente. Somente o Chico vai lá, fazer companhia ao garoto, às
vezes uma noite inteira.
– Chico!
– Que é meu senhor?
– Você lê muito?
– Não. Só revistas e jornais.
– O outro disse...
– Disse o quê?
– Nada.
Ele nos olha, surpreso, quando a pergunta, como um busca-pé,
sai correndo pela sala:
– Você, não pensa em se casar, Chico?
– Eu, casar?
(Dá uma gargalhada)
– Claro que não.
– Não namora?
– Nunca.
– Por quê?
– Não há razões.
Não gosto.
Tenho outras preocupações.
Ora, eu namorando... Tinha graça...
– Chico...
– Que é?
– É verdade que o padre desafiou você para um duelo verbal?
– Ele disse pra eu ir à igreja discutir.
Não é lugar próprio.
– Você gosta do padre, Chico? E ele, o ingênuo e feliz
Chico, respondeu:
– Ué, eu gosto do padre, mas ele não gosta de mim.
– Chico...
– Que é?
– Onde estão suas mensagens?
– Um irmão levou tudo, em vista de tantas complicações.
– Você vai ao Rio?
– Até agora, nada resolvemos.
Possivelmente, mandarei uma procuração.
Numa estante, os livros de Chico. Versos de Guerra
Junqueiro, Tolstoi e uma porção de autores mortos. Na sala do lado está a mesa onde
ele recebe as mensagens. Uma papelada branca, pronta para ser coberta pelas
mensagens do outro mundo. Sexta-feira houve mais uma sessão, desta vez
presidida pelo chefe do executivo municipal. Humberto de Campos não compareceu
mas o Emmanuel, guia de Chico, lá estava.
Quem é Emmanuel? Um romano que existiu na mesma época de
Jesus e conta um mundo de coisas interessantes sobre a Terra, naqueles tempos
de há dois mil anos.
– Ele dita?
– Vou psicografando as mensagens.
Há outros médiuns, como um norte-americano, que ouve as
vozes dos espíritos tão alto que os presentes também escutam. Eu ouço. Os outros,
que estão perto, não.
– Chico...
– Que é?
– Já teve oportunidade de falar com espírito de homens
célebres?
– Homens célebres?
– Napoleão, para um exemplo, já falou consigo?
– Que eu saiba, não. Os assuntos bélicos não são freqüentes,
nas mensagens que recebo do além. Há seis anos, entretanto, meu guia Emmanuel previu
os principais acontecimentos que hoje revolucionam a Terra. Ele disse: – “A
vitória da força é fictícia”.
O cavalheiro do Rio acode:
– E o próprio Chico, meses antes, previu a queda da Itália.
Ele disse, categoricamente, que a Itália seria a primeira a cair. E a Itália
foi a primeira a cair.
Pedro Leopoldo é a cidadezinha de uma rua grande e uma
porção de ruas pequenas, convergindo para ela como servos humildes do rio
principal.
A casa de Chico é uma das melhores do lugar. Três quartos,
sala e cozinha. O banheiro é lá fora, no fundo do quintal, ao lado do
galinheiro.
Chico se levanta de madrugada e vai dar milho às galinhas.
Depois, sua irmã solteira faz o café, que ele toma com pão
dormido, porque o padeiro ainda não chegou.
Apanha a pasta de documentos da fazenda federal, e vai
andando pela estrada, ainda coberta pela neblina.
Volta para almoçar às onze horas.
O expediente se encerra às dezoito horas, mas Chico, nestes
dias de maior trabalho, faz serão. Sua vida é frugal. – “Quero que compreendam o
seguinte: não vivo das mensagens de além-túmulo. Tenho necessidade de trabalhar
para sustentar minha família. Se quase me dedico inteiramente a receber as
comunicações, ainda se entende. O pior, entretanto, é a onda de gente que vem
do Rio, de São Paulo e de todos os Estados”.
– Peregrinos?
– Mais ou menos. Não posso deixar de recebê-los, pois fico
pensando que vieram de longe e necessitam de consolo. Isto leva tempo, toma
tempo. Como se não bastassem essas preocupações, o telefone interurbano não
pára dia e noite. –
“Chico, Rio está chamando... Chico, Belo Horizonte está
chamando... Chico, São Paulo está chamando... Chico, Cachoeira está chamando...”
Evito atender, mesmo constrangido.
Meu Deus! Eu não quero nada, senão a paz dos tempos antigos,
o silêncio de outrora. Quero ser de novo aquele Chico sossegado e tranqüilo que
apenas se preocupava com as coisas simples...
– Impossível a viagem de volta...
– Impossível? Não, não é impossível.
Eu voltarei a ser aquele sossegado Chico. Não tenha dúvida.
O repórter imagina, a essa altura, que ele acredita na
possibilidade de suas comunicações com o além serem repentinamente suspensas.
Vai perguntar ao Chico, mas uma senhora de cor negra entra na sala, carregando um
benjamim de olhos assustados.
– “Trago para o senhor, Seu Chico...”
Ele segura com trinta mãos, cheio de cuidados, o bebê e o
bebê faz um berreiro dos diabos, agita as pernas, sacode as pernas dentro da prisão
dos braços de Chico. Ele sorri e devolve o menino à mãe.
– Meu sobrinho – explica o profeta Chico – é nervoso e fica
deste jeito. Sabe por quê? Ele sofre de paralisia infantil.
– Não tratam dele?
– Não temos recursos. Já deixei claro que não recebo um
centavo pelas edições dos livros que me chegam do além. Assino um documento autorizando
a livraria da Federação Espírita Brasileira a editá-los e, somente após ficarem
impressos, recebo uns cinco ou dez exemplares, para dar aos amigos.
Vamos atravessando a sala e entramos num dos quartos. Na
parede, prateleiras repletas de livros. Remédios à base de homeopatia, que Chico
recomenda. Não sei por que os espíritos manifestam estranha aversão pela
alopatia e suas drogas, receitando sempre combinações homeopáticas. Perto dos
vidros, um armário cheio de livros. As obras de guerra contra a Santa Sé,
assinadas por Guerra Junqueiro, ainda em vida. Os livros de Flammarion e de Allan
Kardec, mas não os psicografados, misturados com volumes de propaganda
anticlerical. Na parede, dependurado, um velho pandeiro.
– Quem toca pandeiro nesta casa?
Chico sorri o sorriso beatífico e diz que não é ele.
– Alguns espíritos?
O sorriso beatífico desaparece.
– Os espíritos não tocam pandeiro.
Saímos para a rua, hoje, sábado movimentado. O povo de Pedro
Leopoldo passeia diante da Igreja que domina de forma esquisita a casa do
humilde psicógrafo que Clementino de Alencar, certo dia, foi roubar de sua vida
serena há dez anos. Hoje, Pedro Leopoldo é a Jerusalém do credo de Kardec. Já
tem hotel e telefone. O povo de lá, por estranho que possa parecer a quem não
conhece pessoalmente o nosso amigo Chico, revela invariável amizade.
Será orgulho pela celebridade que ele deu ao município? Sim,
porque antes de Chico, Pedro Leopoldo nem existia nos mapas de Minas Gerais.
Gostam dele, de seus modos, de sua cara asiática, onde um dos olhos empalideceu
subitamente, como um farol apagado em pleno caminho da luz. A cidade tem uns
treze mil habitantes, contadas as aldeias próximas, mas, espíritas, uns quatro
ou cinco. Todos apreciam Chico, gregos e troianos. Gostam, mas preferem não
rezar o seu catecismo. Ele não se importa. Não procura convencer ninguém à
força de seu estranho e discutido poder.
Quando a carta precatória, intimando-o a depor, chegou a
Pedro Leopoldo, Chico leu devagarinho e abanou a cabeça. – “Eu não posso mandar
uma intimação judicial às almas!” E não deu mais importância ao caso.
Até à volta, sereno Chico. De todas as pavorosas
complicações, você é o menos culpado. Parece uma caixa de fósforo num mar
bravio.
Uma velha beata de Pedro Leopoldo me disse que isto é
castigo:
– “Castigo, sim, nhô moço...
Antão, ele telefona pro inferno e manda chamar os espíritos
e depois num quer se aborrecer?”
Já o trombonista de Pedro Leopoldo deve pensar diferente: –
“Por que será que o Chico só sabe receber mensagens
escritas? Por que não recebe músicas de Beethoven, de Chopin, de Carlos Gomes?”
Ele, o moço amável de Pedro Leopoldo, não dá maior atenção aos
comentários e vai levando como pode a sua vida. É pena, entretanto, que ele não
tenha as qualidades artísticas que vão além do terreno literário. Se fosse
assim, Pedro Leopoldo teria, senhores, não apenas o psicógrafo Chico, mas
também o músico Chico, o pintor Chico, o profeta Chico. Isto mesmo: o profeta
Chico.
(Reportagem publicada originalmente em “O Cruzeiro” de 12 de
agosto de 1944, recuperada via internet por meio do site www.memoriaviva.digi.com.br/ocruzeiro.
Chico Xavier contava na ocasião 34 anos de idade. Sua desencarnação se deu em 2002,
no dia em que o Brasil se sagrou pentacampeão de futebol ao vencer a seleção da
Alemanha por 2 a 0.)
O IMORTAL
JORNAL DE DIVULGAÇÃO
ESPÍRITA
Diretor Responsável: Hugo Gonçalves
Ano 53 Nº 623 Janeiro de 2006
RUA PARÁ, 292,
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