terça-feira, 20 de outubro de 2015

Céu inferno_065_2ª parte cap. V - Suicidas – Fèlicien

TEXTO PARA ESTUDO

Era um homem rico, instruído, poeta de espírito, possuidor de caráter são, obsequioso e ameno, de perfeita honradez.

Falsas especulações comprometeram-lhe a fortuna, e, não lhe sendo possível repará-la em razão da idade avançada, cedeu ao desânimo, enforcando-se em dezembro de 1864, no seu quarto de dormir.

Não era materialista nem ateu, mas um homem de gênio um tanto superficial, ligando pouca importância ao problema da vida de além-túmulo. Conhecendo-o intimamente, evocamo-lo, quatro meses após o suicídio, inspirados pela simpatia que lhe dedicávamos.

Evocação. - Choro a Terra na qual tive decepções, porém menores do que as experimentadas aqui. Eu, que sonhava maravilhas, estou abaixo da realidade do meu ideal. O mundo dos Espíritos é bastante promíscuo, e para torná-lo suportável fora mister uma boa triagem. Custa-me a crer. Que esboço de costumes espíritas se poderia fazer aqui! O próprio Balzac, estando no seu elemento, não faria tal esboço senão de modo rústico. Não o lobriguei, porém... Onde estarão esses grandes Espíritos que tão energicamente profligaram os vícios da Humanidade! Deviam eles, como eu, habitar por aqui antes de se alçarem a regiões mais elevadas. Apraz-me observar este curioso pandemônio, e assim fico por aqui.

Nota - Apesar de o Espírito nos declarar que se acha numa sociedade assaz promíscua e, por conseguinte, de Espíritos inferiores, surpreendeu-nos a sua linguagem, dado o gênero de morte, ao qual, aliás, não faz qualquer referência. A não ser isso, tudo mais refletiu seu caráter. Tal circunstância deixava-nos em dúvida sobre a identidade.

- P. Tende a bondade de nos dizer como morrestes...

- R. Como morri? Pela morte por mim escolhida, a que mais me agradou, sendo para notar que meditei muito tempo nessa escolha com o intuito de me desembaraçar da vida. Apesar disso, confesso que não ganhei grande coisa: - libertei-me dos cuidados materiais, porém, para encontrá-los mais graves e penosos na condição de Espírito, da qual nem sequer prevejo o termo.

- P. (ao guia do médium). O Espírito em comunicação será efetivamente o de Félicien? Esta linguagem, quase despreocupada, torna-se suspeita em se tratando de um suicida...

- R. Sim. Entretanto, por um sentimento justificável na sua posição, ele não queria revelar ao médium o seu gênero de morte. Foi por isso que dissimulou a frase, acabando no entanto por confessá-lo diante da pergunta direta que lhe fizestes, e não sem angústias. O suicídio fá-lo sofrer muito, e por isso desvia, o mais possível, tudo o que lhe recorde o seu fim funesto.

- P. (ao Espírito). A vossa desencarnação tanto mais nos comoveu, quanto lhe prevíamos as tristes conseqüências, além da estima e intimidade das nossas relações. Pessoalmente, não me esqueci do quanto éreis obsequioso e bom para comigo. Seria feliz se pudesse testemunhar-vos a minha gratidão, fazendo algo de útil para vós.

- R. Entretanto, eu não podia furtar-me de outro modo aos embaraços da minha posição material. Agora, só tenho necessidade de preces; orai, principalmente, para que me veja livre desses hórridos companheiros que aqui estão junto de mim, obsidiando-me com gritos, sorrisos e infernais motejos. Eles chamam-me covarde, e com razão, porque é covardia renunciar à vida. É a quarta vez que sucumbo a essa provação, não obstante a formal promessa de não falir... Fatalidade!... Ah! Orai... Que suplício o meu! Quanto sou desgraçado! Orando, fazeis por mim mais que por vós pude fazer quando na Terra; mas a prova, ante a qual fracassei tantas vezes, aí está retraçada, indelével, diante de mim! E preciso tentá-la novamente, em dado tempo... Terei forças? Ah! recomeçar a vida tantas vezes; lutar por tanto tempo para sucumbir aos acontecimentos, é desesperador, mesmo aqui! Eis por que tenho carência de força. Dizem que podemos obtê-la pela prece... Orai por mim, que eu quero orar também.

Nota - Este caso particular de suicídio, posto que realizado em circunstâncias vulgares, apresenta uma feição especial. Ele mostra-nos um Espírito que sucumbiu muitas vezes à provação, que se renova a cada existência e que renovará até que ele tenha forças para resistir.

Assim se confirma o fato de não haver proveito no sofrimento, sempre que deixamos de atingir o fim da encarnação, sendo preciso recomeçá-la até que saiamos vitoriosos da campanha.

Ao Espírito do Sr. Félicien. - Ouvi, eu vo-lo peço, ouvi e meditai sobre as minhas palavras. O que denominais fatalidade é apenas a vossa fraqueza, pois se a fatalidade existisse o homem deixaria de ser responsável pelos seus atos. O homem é sempre livre, e nessa liberdade está o seu maior e mais belo privilégio. Deus não quis fazer dele um autômato obediente e cego, e, se essa liberdade o torna falível, também o torna perfectível, sem o que somente pela perfeição poderá atingir a suprema felicidade. O orgulho somente pode levar o homem a atribuir ao destino as suas infelicidades terrenas, quando a verdade é que tais infelicidades promanam da sua própria incúria. Tendes disso um exemplo bem patente na vossa última encarnação, pois tínheis tudo que se fazia preciso à felicidade humana, na Terra: espírito, talento, fortuna, merecida consideração; nada de vícios ruinosos, mas, ao contrário, apreciáveis qualidades... Como, no entanto, ficou tão comprometida a vossa posição? Unicamente pela vossa imprevidência. Haveis de convir que, agindo com mais prudência, contentando-vos com o muito que já vos coubera, antes que procurando aumentá-lo sem necessidade, a ruína não sobreviria. Não havia nisso nenhuma fatalidade, uma vez que podíeis ter evitado tal acontecimento. A vossa provação consistia num encadeamento de circunstâncias que vos deveriam dar, não a necessidade, mas a tentação do suicídio; desgraçadamente, apesar do vosso talento e instrução, não soubestes dominar essas circunstâncias e sofreis agora as conseqüências da vossa fraqueza.

Essa prova, tal como pressentis com razão, deve renovar-se ainda; na vossa próxima encarnação tereis de enfrentar acontecimentos que vos sugerirão a idéia do suicídio, e sempre assim acontecerá até que de todo tenhais triunfado.

Longe de acusar a sorte, que é a vossa própria obra, admirai a bondade de Deus, que, em vez de condenar irremissivelmente pela primeira falta, oferece sempre os meios de repará-la.

Assim, sofrereis, não eternamente, mas por tanto tempo quanto reincidirdes no erro. De vós depende, no estado espiritual, tomar a resolução bastante enérgica de manifestar a Deus um sincero arrependimento, solicitando instantemente o apoio dos bons Espíritos. Voltareis então à Terra, blindado na resistência a todas as tentações Uma vez alcançada essa vitória, caminhareis na via da felicidade com mais rapidez, visto que sob outros aspectos o vosso progresso é já considerável. Como vedes, há ainda um passo a franquear, para o qual vos auxiliaremos com as nossas preces. Estas só serão improfícuas se nos não secundardes com os vossos esforços.

- R. Oh! Obrigado! Oh! Obrigado por tão boas exortações. Delas tenho tanto maior necessidade, quanto sou mais desgraçado do que demonstrava. Vou aproveitá-las, garanto, no preparo da próxima encarnação, durante a qual farei todo o possível por não sucumbir. Já me custa suportar o meio ignóbil do meu exílio. Félicien.

QUESTÕES PARA ESTUDO

1) O que o Sr. Félicien disse sobre seus sentimentos sobre a Terra e sobre o Mundo dos Espíritos?

2) Por que os médiuns ficaram em dúvida quanto à identidade do Sr. Félicien?

3) Por que Félicien dissimulou a frase quando perguntado de sua morte?

4) Qual a necessidade que Félicien tem no momento e por que?

5) Por que este caso de suicídio apresenta-se sob uma feição especial?

6) O que é fatalidade?

CONCLUSÃO

1) Disse que na Terra teve decepções, mas menores que as do Mundo dos Espíritos. Sonhava maravilhas, e está abaixo da realidade ideal que lhe tinha. Para ele, o Mundo dos Espíritos é bem misturado, e, para torná-lo suportável, seria necessária uma boa triagem.

2) Se bem que o Espírito declare encontrar-se numa sociedade muito misturada, e por conseqüência de Espíritos inferiores, sua linguagem dava lugar para surpreender, em razão de seu gênero de morte, ao qual não fez nenhuma alusão, porque de outro modo seria bem o reflexo de seu caráter. Isso deixou os médiuns com algumas dúvidas sobre a sua identidade.

3) Por um sentimento desculpável em sua posição, e que não compreendemos, ele não queria revelar o seu gênero de morte ao médium; foi por isso que disse “palavras ocas”; acabou por confessar, levado por pergunta direta, mas está muito aflito com isso. Ele sofre muito por ter se suicidado, e afasta, tanto quanto possa, tudo aquilo que lhe lembra esse fim funesto.

4) Tem necessidade de preces; sobretudo, que orem para que ele fique livre dos horríveis acompanhantes que estão junto dele e que o obsidiam com seus risos, gritos e zombarias infernais.

5) Esse caso particular de suicídio, embora ocorrido em circunstâncias muito vulgares, apresenta-se, contudo, sob uma fase especial. Ele nos mostra um Espírito que sucumbiu várias vezes nessa prova, que se renova a cada existência, e se renovará enquanto não tiver força para resistir a ela. É a confirmação deste princípio que, quando o objetivo do adiantamento para o qual encarnamos não é atingido, sofremos sem proveito, porque deveremos recomeçar até que saiamos vitoriosos da luta.


6) Segundo Félicien, o que chamamos de fatalidade não é outra coisa que a nossa própria fraqueza, porque não há fatalidade; de outro modo o homem não seria responsável pelos seus atos. O homem é sempre livre, e aí está o seu mais belo privilégio; Deus não quis dele fazer uma máquina agindo e obedecendo cegamente. Se essa liberdade torna-o falível, torna-o também perfectível, e não é senão pela perfeição que ele chega à felicidade suprema.

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