quarta-feira, 8 de abril de 2015

2 - O CÉU E O INFERNO
OU
A JUSTIÇA DIVINA SEGUNDO O ESPIRITISMO
O “FEITIÇO” DAS PALAVRAS
Protágoras, filósofo grego, afirmava: “o homem é a medida de todas as coisas”. Ele próprio é a régua e a unidade de medida com que dimensiona, julga aquilo que experimenta. Observamos, assim, visões grandiosas ou mesquinhas da vida, otimistas ou pessimistas, simples ou complicadas. Nessa perspectiva, mostramos muito de nós mesmos ao fazermos uso das palavras que escolhemos (ou não) quando falamos com alguém. Freqüentemente, durante uma conversa, raros são os momentos em paramos para “pensar” sobre as nossas palavras. Talvez não dê tempo. Ou talvez desconheçamos o significado da linguagem para o Espírito, como forma de autoconhecimento. Há um pensamento destacado por Joanna de Ângelis em um de seus livros que diz:
“Somos o que pensamos. Tudo o que somos vem dos nossos pensamentos. Com nossos pensamentos fazemos o mundo”1 (Buda)
E a palavra, o que tem com isso? Ora, não é ela justamente uma das expressões do pensamento, isto é, da maneira de pensar? Além disso, quando falamos, falamos com alguém. Isso nos permite considerar melhor o uso das palavras. O implícito torna-se explícito. Por isso, acabamos esclarecendo para nós mesmos o que antes só conhecíamos de modo difuso.
É estreita a interligação entre pensamento e linguagem. Onde o pensamento é uma fala internalizada, e a linguagem, a expressão do pensamento. Assim, convidamos você, amigo leitor, para que realize conosco um teste de auto-percepção. Como? Simples. Repare, em qualquer conversa comum do seu dia, as palavras que usa - sem se preocupar para isso em escolhê-las melhor. Isso mesmo. Apenas se dê conta do que vai saindo de sua boca. De fato isso exige um certo malabarismo, um como que distanciamento daquele momento em que nos identificamos tão intimamente com o que dizemos. Mas o que acontece? O que observamos?
Encontramos em nossas palavras mais do que um veículo de manifestação do nosso pensamento, e, por extensão, dos nossos desejos, aspirações. Platão acreditava que a linguagem fosse uma espécie de pharmakon (palavra grega que significa, ao mesmo tempo, remédio, veneno e cosmético). Para Platão, então, as palavras seriam remédio na medida que, através delas, descobrissemos a nossa própria ignorância e aprendêssemos algo. Seriam veneno se nos deixássemos seduzir por elas, sem indagar se são verdadeiras ou falsas. Seriam cosmético se mascarássemos a verdade sob as palavras. Aqui vale a reflexão: Como estamos usando as palavras? Para quê?
Elas representam os sentimentos-conceitos2 do indivíduo relativos a importância pessoal, à identidade, ao seu papel no mundo. Necessitamos, pois, de estudar o vocabulário que utilizamos. É por meio da palavra (e do pensamento) que internalizamos, quando crianças, as primeiras proibições e exigências dos nossos pais, e criamos com isso um modelo do mundo e de nós mesmos dentro do mundo. Assim, nunca encontramos palavras “soltas”, desatreladas de contextos, mas sempre “amarradas” a pessoas, situações, coisas, vivências enfim, onde nas palavras de Wittgenstein (filósofo da Analítica da Linguagem):
“Os limites da minha linguagem denotam os limites do meu mundo.” (Ludwig Wittgenstein)
Há, então palavras que encantam, como as juras de amor, ou os primeiros ensaios do nosso filho na tentativa de nos chamar pelo nome. Palavras que fazem agir, que despertam, que reascendem a esperança, que acolhem, que distanciam, que recolhem na memória momentos sublimes ou que insistem em martirizar momentos de pesar. Mas há também palavras que aprisionam, fazem emudecer, que podem deter-nos os movimentos de busca e construção da felicidade. Essas são as mais terríveis! Mas, como não têm realidade por si mesmas, elas são os próprios pensamentos daqueles que as utilizam... Por isso há uma mudança no vocábulário daquele que muda algo em si mesmo.
A criança, ao crescer, não usa mais certos termos. O adolescente “esquece” algumas gírias muito comuns em dada época da vida. O senhor de idade avançada, sulcado pelas marcas da própria experiência, também esquece ou passa a centralizar a sua atenção em algumas expressões mais significativas para ele à medida que envelhece.
É por isso que pensamos ser necessário fazer, com certa freqüência, um inventário da bagagem dos conceitos que carregamos em nossa bagagem (memória). Pois
“A nossa linguagem conceitual tende a fixar as nossas percepções e, derivativamente, nossos pensamentos e comportamento... A resposta não é dada à situação física mas à situação conceitualizada. (Robert K. Merton) ”3
O que isso quer dizer? Que quando atribuímos algum sentido à situação, o nosso comportamento subseqüente e algumas das conseqüências deste comportamento são determinados por esse sentido anteriormente atribuído. Ou seja, respondemos não apenas aos aspectos físicos, aparentes, de uma situação, mas também ao sentido que dela fazemos. As palavras carregam consigo as proibições, as exigências e expectativas. Em síntese, nos identificamos com o vocabulário de que nos utilizamos. As palavras suscitam sempre reações psicológicas em quem fala e/ou ouve ou capta. Quantas brigas, ódios, mal-entendidos, não surgem pelo conceito interno e pessoal que carregamos nas palavras? Justamente por não nos darmos conta de que são pontes entre nós, cujo objetivo é tornar acessíveis nossos valores, ideais, conquistas – mas, também, que há pontes mal construídas, fracas, resistentes, desengonçadas e firmes.
Dentro desta perspectiva, então, não parece ser tão fácil a compreensão das idéias espíritas, veiculadas por palavras que precisam, necessariamente estar ao alcance de quem busca estudá-lo.
Que bastaria ir ao Centro Espírita, ouvir palestras, mesmo àquelas que nos encantam, que extraem lágrimas de nossos olhos... Mas isso pode não bastar. É preciso, muitas vezes, realizar uma espécie de cirurgia, desconstrução de estruturas mentais já estabelecidas em nós (formas de pensar extratificadas) – para que não ocorra absurdos como vestir velhas idéias com roupas novas. Vamos a alguns exemplo para melhor esclarecer o leitor. Procure o leitor observar se concorda com algumas afirmações abaixo:
              Não me dedico ao bem porque sofro muito...               Não faço palestras em torno do bem porque carrego muitas faltas...               Não estudo porque tenho dificuldade ( ou porque sou velho demais, ocupado demais,               etc)...
              Não procuro talentos espirituais porque já passei por numerosas desilusões                (fui enganado, etc)...
              Não oro porque não tenho merecimento (não tenho “moral”)...
O que pensaria o leitor se disséssemos que por trás de cada afirmativa dessas há um pano de fundo, uma base, que é sustentada ao se manter nesses pensamentos: na verdade estamos prisioneiros das velhas formas de pensar. Só para ilustrar melhor, tentemos desconstruir a primeira afirmação, à luz do pensamento espírita. “Não me dedico ao bem porque sofro muito...”. Onde o equívoco? Inicialmente precisamos lembrar que a provação é inerente à condição do nosso planeta dado os Espíritos que aqui habitam (necessitados de aperfeiçoar o sentimento moral), portanto, inevitável. Isto posto, é urgente agir na construção do bem em nós mesmos, para que a prova, a dificuldade, não nos encontrem desprevenidos, de braços cruzados. Ou nas palavras de Maia de Lacerda:
“O infortúnio é comparável à tempestade e o crédito de quem vive em serviço assemelha-se à edificação que oferece abrigo contra a intempérie”4
Usamos aqui algumas idéias espíritas tais como a Lei de Ação e Reação, a finalidade da encarnação na Terra, a pluralidade dos mundos habitados e o gênero das diversas humanidades que habitam tais mundos, etc. O que fizemos então? Usamos da razão para, com tais idéias, promover uma limpeza, uma higienização do nosso pensamento, tornando-o mais vigoroso, otimista, forte – em que eu sou o responsável por mim mesmo, sem transferências, ou fugas psicológicas. Uma verdadeira batalha deve o espírita travar aqui! Por isso, dizem os Bons Espíritos, que os “inimigos” de dentro são os verdadeiros inimigos. São as nossas velhas tendências que nos fazem perdurar na ação igualmente velha e contraproducente, pois continua a nos trazer doses de infelicidade. Fica como desafio ao leitor procurar desconstruir as demais afirmações, caso se interesse em desconstruí-las, é claro...
Agora poderíamos nos perguntar, o que tem tudo isso a ver com o livro O Céu e o Inferno? Ora, segundo o Espiritismo, reencarnamos para melhorarmo-nos, e, por conseqüência, melhorarmos a qualidade da nossa vivência (experiência) aqui na Terra. Assim, é de fundamental importância a desidentificação, a fim de que realizemos a higiene psicológica, evitando impregnações externas (idéias equivocadas dos outros) e internas (tendências que reassumam o campo da consciência), contribuindo para que nos encontremos com a nossa realidade – o que de fato somos, e não o que gostariam que fôssemos, estimulado pelo desejos alheios (pais, amigos, sociedade, mídia, etc). Dessa forma superamos a contingência daquilo em que estamos (problemas, desajustes, situções conflitantes, etc). Não se constrói realidade sobre um chão de ilusão. Cedo ou tarde “a casa cai” e o desespero se faz presente.É como diz Alberto Caeiro:
"Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram, e raspar a tinta com que me pintaram os sentidos, desencaixotar minhas emoções verdadeiras, desembrulhar-me, e ser eu...."
Desembrulhar-se, retirar a cobertura do verniz social que funciona mais como uma capa de astúcia na relação social mal dirigida, isto é, dirigida às finalidades exclusivamente materialistas, em que o outro é mero objeto de uso, portanto, descartável.
Vários nomes para uma mesma ação: a de renovar o corpo de idéias pelas quais agimos na vida. E é com esse propósito, então que utilizando as comunicações dos Espíritos em diversas situações em que se encontravam no Além-túmulo, Kardec “construiu” um manancial para iluminar a razão, uma “prótese” para o pensamento, ensinando-nos a direcionar, usar, combinar os diversos ensinamentos dos Espíritos Superiores, encarregados de auxiliar o homem na sua caminhada na Terra, no sentido de higienizar o nosso mundo mental, restabelecendo muitos sentimentos-conceitos que trazemos associado à palavras como
Morte, Nada x Vida, Porvir Céu x Inferno x Purgatório Pena, Castigo x Culpa Anjo x Demônio
E por que isso é importante? Assim, arriscamos levantar algumas perguntas, correndo o risco de nos anteciparmos ao leitor, mas certos da utilidade delas. Invariavelmente há sentimentos intensos associados àqueles termos. Talvez o leitor já tenha conhecido alguém “paralisado” pela sensação de culpa frente a algo que lhe tenha acontecido. Ou, então, pessoas, que por não aceitarem mais idéias como céu, inferno, e nem tendo uma idéia de continuidade após a morte, julgam mais “inteligente” aproveitar a vida, o que vale dizer, sem nenhum tipo de “freio” em relação ao que possam fazer ao outro e a si mesmas – sem a noção de responsabilidade por si mesmas.
 Vale mencionar também a situação daquelas pessoas que, dizendo-se espíritas, justificam e reforçam o mecanismo de culpa-castigo com palavras “novas” tais como os “carmas” na vida, numa visão simplista do “tenho de suportar, não tem jeito”, isentando o indivíduo daquilo que lhe é mais fundamental: ele como o agente do seu processo educativo na Vida, responsável e capaz de mudar-se, mudando também os condicionamentos cármicos, que existem sim, mas que não são a razão para se viver.
Mas tendo o livro sido editado em 1865, poderia ainda ser de alguma utilidade além do uso histórico? Tratando de assuntos de caráter imortalista, é evidente que sim. Pois o livro não é apenas um a confrontação de idéias velhas e novas (como culpa substituída por responsabilidade), mas, acima de tudo, uma apresentação de situações concretas, na descrição das vidas de muitas pessoas, correlacionando o como viveram enquanto na Terra com o gênero de morte que tiveram e o como estavam após a morte. Onde alguma dessas pessoas poderia ser você mesmo, leitor amigo! Daí, permite-nos entender, o livro, como se opera o mecanismo da Justiça Divina (daí o seu outro título). Mas tudo isso fundamentado em um conjunto de idéias coerentes, precisas, necessário ao atual estágio da razão humana. Assim, após uma leitura refletida, atenta, é inevitável transpor tudo isso na aplicação em nossa própria vida. E essa foi a principal intenção do autor: Como que “materializar” as idéias espíritas numa aplicação vívida e de interesse para nós, espíritos ainda encarnados, onde pudéssemos discriminar os problemas quemerecem e devem ser investigados, de tal forma a aproveitarmos melhor o presente momento que vivemos. Isso evidencia o cuidado de Kardec em torno do próprio objetivo da Doutrina Espírita – o melhoramento moral do homem.
Mas para isso é preciso “quebrar o feitiço” das palavras que sustentam nossas velhas idéias. para que não nos percamos entre as grades dos dogmatismos e intolerâncias primeiro para conosco mesmos, depois para com os outros e até a própria vida. Como também é preciso cuidar para não cairmos “enfeitiçados” por outras tantas palavras que mais distraem do que edificam, que, no fim, só fazem “esconder” aquilo que realmente tem relevância: o fato de TODOS experimentarmos a necessidade de viver, de gozar, de amar e ser feliz e que há fatores impeditivos dessas aspirações – reconhecê-los primeiro, para depois exercitarmo-nos em removê-los, como quem destampa um véu a encobrir-nos os “olhos da alma”, sensibilizando-nos mais e mais com a Vida, Herança Maior de Nosso Pai...
Nesse processo é preciso esquecer (certas coisas) para se lembrar (dar espaço a outras mais relevantes), quando, enfim, acabaremos não sendo mais
“o intervalo entre o nosso desejo e aquilo que os desejos dos outros fizeram de nós”
 1FRANCO, Divaldo P, pelo Espírito Joanna de Ângelis. In “O Despertar do Espírito”, Experiências Transpessoais. LEAL. 1ª ed. Salvador. 2000. Pág. 96.
2WILBER, Ken. In “O Projeto Atman – Uma Visão Transpessoal do Desenvolvimento Humano”, As Esferas Mentais do Ego. Cultrix. 9ª ed. São Paulo. 1999. Sentimento-conceito é utilizado aqui para designar as “forças poderosas e emocionais que motivam ou perturbam” o indivíduo, “sustentadas ou efetivamente engendradas por complicados processos simbólicos”.
3ALVES, Rubem. In “Conversas com quem gosta de ensinar”, Sobre Palavras e Redes. Ars Poetica / Speculum, 1995, p. 63-82.
4 VIEIRA, Waldo. In “Seareiros de Volta”, Falsas Idéias. FEB. 4ª ed. São Paulo. 1987. Pág. 79.

Por Vanderlei Luiz Daneluz Miranda
Julho / 2001

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