ENCONTRO COM DIVALDO FRANCO
Há no mundo igrejas ricas em bens materiais conclamando as nações prósperas da Terra a amenizarem o problema da fome que se abate sobre grande parte da Humanidade.
Quem, em que hora, tempo e lugar deve praticar a caridade?
Divaldo: - Vamos relatar um episódio que vivenciamos alguns anos atrás.
Certo dia deparamo-nos com uma alma muito sofrida, presa de extrema miséria. Dispunhamo-nos a refletir acerca do que faríamos com a desventurada criatura, caída em plena via pública, febril e tiritando de frio.
Racionalizamos: amanhã voltaremos aqui para levá-lo a um hospital, ou pediremos a ajuda de um médico. Ao mesmo tempo passamos a conjeturar: poderíamos, agora, arranjar-lhe um caldo quente; quem sabe poderíamos levá-lo para casa. Levá-lo para casa?
Onde iremos acomodá-lo? Que fazer?
Com a mente fervilhante de interrogações perturbadoras, eis que nos surge à frente nossa querida Joanna de Ângelis, falando mais ou menos nestes termos: “Ao tempo dos Czares, certa noite estava sendo representada uma célebre peça no teatro de Moscou, que se refertava com as dependências totalmente tomadas pelos membros da realeza. O enredo girava em torno dos sofrimentos de um soberano místico que, em meio a cruéis sofrimentos, sacrificou-se pela fé cristã. A música enleava os corações da nobreza assistente, todos se identificando com as agonias cristãs da personagem, que de alguma forma traduzia um pouco do íntimo de cada um. Findo o colorido espetáculo, à saída do teatro, deitado sob a marquise, delirava um mendigo tiritante de frio em meio à nevasca da noite. Uma das damas da corte, ao descer as escadarias que a levariam à sua carruagem, movida por um impulso natural de bondade, tomou do casaco de peles que a agasalhava, propondo-se a cobrir o homem que parecia moribundo. A dama que lhe fazia companhia, porém, sustou-lhe o gesto nobre dizendo: ‘Não faças isso.
Amanhã envias por um dos teus servos agasalhos quentes para ele’.
‘Sim, tens razão’ - respondeu a dama do casaco de alto preço, movida agora por sentido utilitarista da vida.
‘Demandaram, assim, ao luxuoso castelo, alimentaram-se frugalmente, esquecidas já da agonia do desconhecido tombado sob a marquise enregelante. No dia seguinte, despertando já manhã alta, a dama lembrou-se do homem tiritante de frio.
Chamou então um de seus servos e ordenou que levasse agasalho ao pobre homem. Lá chegando, o serviçal deparou-se com o desconhecido já morto, sendo removido pela polícia’.
Finalizou, então, Joanna de Ângelis:
‘Sempre que a caridade recebe a interferência de polêmicas ou racionalizações, discussões ou debate, invariavelmente o socorro chega atrasado. É necessário que cada um de nós faça o bem hoje, aqui e agora’. Tratamos então de auxiliar o homem abandonado à intempérie da noite, sem mais cogitações que não as do socorro imediato.
No que se refere às igrejas fartamente providas de bens materiais concitando os governos de mais largos recursos a minimizar o sério problema da fome e da desnutrição na face da Terra, com todo o respeito queremos lembrar que a riqueza de nada nos valerá se não tivermos no cofre do coração o pão da caridade e a palavra consoladora da misericórdia que nos compete distribuir. Jesus Cristo, que foi a encarnação da pobreza material, disse: ‘As raposas têm covis, e as aves do céu ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça’.”
Qual o posicionamento do Espiritismo com relação ao pobre, à vida miserável que leva. Até quando o senhor acha que no mundo continuará havendo, essas desigualdades sociais, esses contrastes gritantes que nós vemos e estamos assistindo em várias regiões do país e várias regiões do mundo?
Divaldo: - A resposta está no Evangelho de Jesus. Quando a mulher arrependida levou-lhe bálsamo e o ungiu, Judas, preocupado com a despesa que ela fazia, já que a substância era de alto preço, lamentou que fosse desperdiçada com Ele.
Chegou mesmo a considerar que aquela substância poderia ser vendida e revertida a benefício dos pobres.
Jesus redargüiu: Ela agiu muito bem, porque “os pobres sempre os tereis, mas a mim nem sempre.” E aqui, vale dizer que sempre haverá pobres, enquanto o homem em gozo e no exercício das suas aptidões, da fortuna, faça delas mau uso. Dentro do conceito da reencarnação, aquele que hoje experimenta limites, dificuldades e problemas, foi o mesmo que abusou, em existência próxima, transata ou remota, dos valores com que a vida o aquinhoou. Dentro da mesma questão, vemos que a Humanidade está num período de trânsito. Enquanto vigir o egoísmo no coração dos homens, haverá, inevitavelmente, a miséria, porque a ambição desmedida de alguns poucos engedra a miséria de muitos. O Espiritismo levanta a questão de forma otimista, convidando os que possuem a repartir, a criarem empregos, a darem oportunidades, a favorecerem os que se encontrem em situações de precariedade, com ensejos mais felizes, e acreditamos que dia virá, não muito longe, em que esta paisagem erma e triste da miséria sócio-econômica cederá lugar a uma situação menos penosa, mesmo porque,consideramos que o grande drama da atualidade não tem sua gênese, exclusivamente na problemática da miséria econômica, senão na grande problemática da miséria moral. Para nós, é a questão moral, de valor transcendente, que engendra aquela miséria de natureza econômica.
A miséria é superior e mais grave que a própria miséria humana, a miséria financeira, a miséria dos famintos?
Divaldo: - Indubitavelmente. Porque nos países onde se apresentam um ótimo nível de salários e produção “per capita”, a miséria moral é tão lamentável que não deu felicidade a esses povos, embora a situação econômica elevada de que desfrutam, com ausência de problemas inéditos, tais como a Suécia, a Holanda, a Suíça, o índice de suicídio,de loucura, de neurose, de agressividade é, igualmente, muito alto, demonstrando que a miséria econômica, embora muito dolorosa, que nos assalta é menor. Mas a miséria moral, a ausência do amor no coração, o predomínio do egoísmo são mais terríveis do que aquela outra condição da chamada miséria do Terceiro Mundo, do chamado mundo em desenvolvimento...
Há quem diga que a Doutrina Espírita, que vem pregando a reencarnação, aliena o homem da realidade social em que ele vive, porque a criatura humana pensa: bom, se eu voltarei à Terra, eu deixarei para amanhã. Ou outra encarnação, o que me compete fazer hoje, poderei pagar amanhã. Então, dizem, afirmam várias pessoas que a Doutrina Espírita estaria alienando o homem da realidade social em que vive. Não apenas em pregando a reencarnação, mas também promovendo a caridade, porque o homem recebendo o pão, não trabalharia, ficaria de braços cruzados, não produziria e não sairia da miséria. Que você diria a respeito disso tudo?
Divaldo: - Que as pessoas não estão bem informadas em torno da tônica da reencarnação. A reencarnação é uma colocação dinâmica que promove o homem. Podemos considerar a Terra como sendo uma Universidade, com todos nós freqüentando os vários cursos aqui administrados. Sabemos que temos a oportunidade de, ao não fazermos uma aprendizagem correta, repetir o ano. Mas não é por isto que o indivíduo inteligente deixará de promover-se, de conquistar o valor intelectivo, para ficar numa situação parasitária, a repetir as experiências até que seja banido da escola. Através da reencarnação, o indivíduo tem a ensanha de reparar, numa etapa, aquilo que noutra, anterior, ele não haja realizado bem. A reencarnação é uma metodologia evolutiva que dignifica o homem, demonstrando a justiça de Deus, que a ninguém condena em caráter de perpetuidade.
Oferecendo o ensejo de o indivíduo auto-perdoar-se, isto é, concedendo-lhe a oportunidade de reparar os seus erros para progredir, a Divindade faculta-lhe o retorno à Terra, tantas vezes quantas se façam mister para o seu processo evolutivo de sublimação. Quanto à colocação de que a caridade mantém o homem estacionário, esta é igualmente uma forma de observar a caridade do ponto de vista material exclusivamente.
O apóstolo Paulo, na sua célebre Epístola aos Coríntios, quando se reporta à caridade, vai muito além da tônica sobre a doação; fala sobre o aspecto fundamental de o indivíduo auto-doar-se, de iluminar consciências, de dar o pão a quem tem fome e depois dignificá-lo, a fim de que ele vá adquirir o seu próprio pão. É a velha estória da “vara de pescar”, da tradição chinesa. Não lhe damos apenas o peixe, ensinamo-lo a pescar, oferecendo-lhe a vara e o anzol. Não podemos, porém, pedir a uma pessoa paralítica, a um enfermo a alguém sem mais amplas possibilidades que vá pescar, se não ajudarmos a que chegue, ao menos, à borda do rio. A função da caridade dando coisas, que os espíritas fazemos, é relevante pelo que enobrece o homem.
Não apenas o fazemos, nós, os espíritas. Fazem-no ou fizeram, Madre Teresa de Calcutá, esse símbolo da fraternidade universal; o extraordinário Albert Schweitzer, em Labarené, na África, no antigo Congo Belga, a santificante tarefa realizada por Vicente de Paulo e que hoje é imitada por homens notáveis como Fouleraux, o apóstolo da Lepra, na atualidade, ou como no passado, George Dominique Pire, prêmio Nobel da Paz, que concebeu e realizou as célebres aldeias européias para as vítimas da guerra. São todos estes trabalhos de promoção humana. A alguém que está com uma forte dor de cabeça, não adianta ministrar-lhe lições de civilidade; dando-lhe, porém, um analgésico e retirando-lhe, temporariamente embora, o mal-estar, poderemos prepará-lo para que ele encontre a causa desse mal que o aflige e a erradique. É o que o Espiritismo faz, bem como outras doutrinas filantrópicas baseadas no amor, oferecendo ao indivíduo a oportunidade de este liberar-se do mal imediato pela cura de urgência, para que possa fazer a terapia de profundidade e as futuras terapêuticas preventivas. A reencarnação é uma metodologia de amor que dignifica o homem.”
Como o Espiritismo examina a condição do “trombadinha”? Eles derivam dessa perplexidade do mundo atual, que é cruel, antagônico, cheio de carência por falta de bens materiais ou são pessoas que receberam maus Espíritos ou Espírito ainda em formação?”
Divaldo - Eles são as grandes vítimas do nosso contexto social. É lamentável, mas é preciso dizer, que em relação a eles, a Civilização falhou. Os postulados cristãos, que deviam conduzir o homem, através da esperança, infelizmente não deram a certeza, na forma como foram apresentados pelas religiões, para que crêssemos entendendo, porque o homem é racional. A ética e a educação falharam em face ao desequilíbrio das suas convenções. O “trombadinha” é a síntese de uma sociedade que fracassou nos seus postulados de ética, ora sem rumo. Não se trata de Espíritos infelizes. Eles não tiveram oportunidade melhor, porque a sociedade ainda não compreendeu que a nossa é a felicidade dos outros. O que fizermos ao próximo estaremos fazendo a nós mesmos. Como disse Jesus: “O que fizerdes a um destes, a mim mesmo o fazeis”. Entretanto, eu ainda quero considerar esta colocação: o Espiritismo vê o problema como de emergência e nós, os espíritas, estamos tomando as providências, dentro das nossas possibilidades, através do exercício legal da família. Desejo lembrar que o Espiritismo é a Doutrina que chegou à Terra, há apenas 148 anos; os seus postulados somente agora estão começando a ser aprendidos; encontrou reações de todos os lados, dificuldades, como o Cristianismo primitivo, para poder transmitir as suas lições de fraternidade e de amor. O Espiritismo está ao lado de todos aqueles que trabalham pelo ideal de uma Humanidade melhor, que se esforçam para evitar os dramas lamentáveis.
Nós mesmos, na cidade de Salvador, procuramos diminuir o problema pela vivência dele. É que estamos envolvidos numa obra social, na qual 2.018 crianças recebem assistencial moral, educacional, alimentar. O menor carente, de que se fala, é recolhido em unidades-lares onde reconstruímos as famílias que lhes faltam. O menor que tem pais, nós o recebemos desde zero até 3 anos e o colocamos em nossa Creche ; de 3 a 6 anos, no Jardim de Infância, das 7:00 horas às 17:00; de 7 anos aos 14 anos, no 1º Grau, até a 6ª série, por enquanto; e, a partir do próximo ano, teremos as 7ª série e 8ª série.
Simultaneamente, através das Escolas, vem a orientação profissionalizante para que evitemos a deserção dos deveres e a vadiagem. O problema do “trombadinha” é um efeito cujas causas estão no próprio homem, sendo necessária uma medida de emergência, através do amor. O amor que desapareceu dos nossos corações, como diz um pensador inglês: “O homem moderno perdeu o endereço de Deus”. E porque perdeu o endereço de Deus, a sociedade está ameaçada. Há no entanto, perspectivas generosas. Quando todos denunciam um mal é porque já tem sensibilidade para evitar os chamados valores ilusórios. Essa preocupação com o menor carente, que a todos hoje nos envolve, é um sintoma, síndrome de interesse para que todos nos unamos, religiosos ou não, porque esse problema é da Humanidade, e procuremos fazer alguma coisa em favor deles, que serão o futuro da sociedade em favor deles, que serão o futuro da sociedade. Mas isso, em caráter paliativo, por enquanto, para que depois possamos dar ao grupo social o equilíbrio normal de uma educação preventiva, evitando as calamidades que aí estão dominadoras.”
Fonte: Baccelli, Carlos A.; “DIVALDO FRANCO EM UBERABA”; Leal.
Worn, Fernando; “MOLDANDO O TERCEIRO MILÊNIO”; Leal.
Franco, Divaldo Pereira; “ELUCIDAÇÕES ESPÍRITAS”; Leal.
“INFORMAÇÃO”:
REVISTA ESPÍRITA MENSAL
ANO XXX Nº351
Janeiro 2006
Publicada pelo Grupo Espírita “Casa do Caminho” -
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