sexta-feira, 27 de setembro de 2013

ESTUDANDO AS OBRAS ESPIRITAS

SERVIÇO
Celso Martins


Um dos mais graves problemas com que se defronta o movimento espírita no Brasil (pesa-me muito dizê-lo) é justamente a falta de estudo criterioso, metódico, reflexivo das obras básicas de Allan Kardec. Nossos Centros ficam literalmente lotados nas sessões de caráter mediúnico porque, na verdade, os fenômenos, mais que isto, a possibilidade de obter alguma coisa do Plano Espiritual, tudo isso consegue atrair as massas populares como o mel atrai a mosca.
Geralmente, salvo honrosas exceções, todos querem ouvir um conselho sobre um assunto de ordem material, querem tomar um passe, beber água fluidificada, ver-se livre de uma perturbação e coisas assim... Mas... nas reuniões de estudos sérios, nos encontros para a leitura e a interpretação d’O LIVRO DOS ESPÍRITOS ou do EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO ou ainda d’O LIVRO DOS MÉDIUNS, aí então podemos contar nos dedos, salvo - repito - honrosas exceções - o número dos assistentes, não raro o mesmo grupinho de sempre! Em decorrência disto, resultam desagradáveis conseqüências não só para o indivíduo mas também para o próprio Movimento Espírita. A Doutrina Consoladora não se restringe unicamente à produção de fatos mediúnicos, não! Para o espírita consciente, o mediunismo é um meio, é uma ferramenta de trabalho, porém não é o objetivo final do Espiritismo, não.

O mediunismo, nunca será demais repetir isto, é o meio mais eficiente para demonstrar a existência do Mundo Espiritual e as relações que se estabelecem entre os mortos (desencarnados) e os vivos (encarnados).
Todavia, a finalidade maior do Espiritismo, o fim supremo a que ele se destina é justamente a reforma moral das criaturas. Quer dizer, é o esclarecimento do Espírito, quer esteja encarnado ou não. É a sua purificação mediante a purificação de seus sentimentos como a que se consegue combatendo o orgulho, combatendo a vaidade, o egoísmo, como a que se obtém através da prática espontânea e constante das virtudes evangélicas, à frente das quais se destaca a Caridade.
Tudo isso se consegue estudando detidamente as obras básicas de Kardec e aquelas outras que lhe são imediatamente subsidiárias.
Há necessidade de debates e de encontros, de estudos e mesmo cursos regulares para a disseminação e melhor compreensão dos postulados espíritas em termos de esclarecimento nacional. E isto, notemos bem! — sem  nenhum laivos de salvacionismo ou de catequese! Por falta deste estudo, muita gente confunde o Espiritismo com o simples mediunismo! Vai daí a prática de atos ritualísticos (uso de velas, de defumadores, de cantos exóticos, de vestimentas especiais, de fórmulas secretas, de preces cabalísticas, de orientações astrológicas...) que em absoluto nada tem que ver com a pureza doutrinária do Espiritismo. Vai daí a crença em superstições que não encontram guarida no seio do corpo doutrinário do Espiritismo.

Vai daí enfim a permanência da criatura (tanto encarnada como desencarnada) nas teias da ignorância, nas malhas das crendices, nos atalhos da ilusão e o Espiritismo sendo considerado apriorísticamente uma terrível mixórdia de cultos primitivistas, de práticas fetichistas quando em verdade é uma doutrina altamente filosófica, espiritualista e espiritualizante, de monstrada cientificamente porque tem bases científicas e com implicações de ordem moral capaz de trazer nova luz para o nosso entendimento e muita paz para os nossos corações! A propósito, vale registrar aqui uma conversa que tive há tempos com um amigo. Foi mais ou menos assim o nosso diálogo: — Quer dizer que o senhor é Espírita Kardecista? — declarou certo amigo meu, a certa altura de uma longa palestra que travávamos animadamente. —
Não é bem assim. Eu só sou Espírita. Não sou Kardecista, não. — Ah!... Já sei O senhor então é umbandista? — concluiu logo o amigo sorridente. — Nada disso. Eu não sou umbandista, não. Já disse, sou Espírita. Espírita e nada mais. — Então agora eu é que não entendo mais nada. Os espíritas ou são Kardecistas ou são umbandistas. Ou será que existem outros grupos que eu ainda não conheço? — comentou ele desolado. Ao que eu então passei a explicar clara, objetiva e calmamente. — Olhe, não há nada na Doutrina Espírita que autorize a dividir os espíritas em dois, em três ou mais grupos distintos. A criatura ou é Espírita ou não é Espírita. Assim sendo, Umbandismo é uma coisa e Espiritismo é outra, muito diferente. A Umbanda por exemplo se formou por um processo que em Sociologia se chama de sincretismo religioso.
O dicionário nos ensina que, do ponto de vista filosófico, sincretismo é exatamente o sistema que combina princípios de diversos outros sistemas constituindo uma amálgama, isto é, uma mistura de concepções diversas. Um exemplo tirado à História das Religiões pode aclarar a questão. O Catolicismo durante a Idade Medieval recebeu a contribuição sincrética de crenças filosóficas de pensadores e de escolas gregas do Platonismo, do Néo-Platonismo, do Estoicismo, etc...; de certos princípios morais e de elementos históricos do povo judeu e dos cultos do Orfismo e do Oriente. Em virtude desta interação, ainda hoje o Catolicismo apresenta aspectos sincréticos como por exemplo as vestes paramentais de seus sacerdotes, a tonsura, o batismo pela água, que vem das práticas religiosas gregas em louvor à deusa Cotito, as imagens, as procissões, a vinda de um Messias a partir de uma virgem, etc... A própria festa de Natal tem raízes pagãs e foi incorporada ao Cristianismo pela Igreja por um processo sincrético.
Evidentemente não vai aqui nenhuma crítica maldosa aos nossos irmãos católicos com tais apreciações de caráter histórico. O próprio Jesus nos dizia que é preciso colocar o fermento em contato com a massa para levedá-la inteiramente. Historicamente a massa do paganismo só poderia ser levedada pelo fermento do Evangelho se este se misturasse com ela, graças, por exemplo, ao trabalho de um Paulo de Tarso levando a mensagem cristã aos chamados gentios. O fermento do Evangelho se misturou assim com a farinha da cultura da época. Há quem diga que o Espiritismo hoje em dia seja um outro exemplo de sincretismo religioso. Mas quem pensa assim, pensa errado. Não sei se você sabia, mas o sociólogo francês Halley Chatelain fêz pesquisas na África sobre as religiões primitivas que o tráfico negreiro trouxe para o Brasil; e apurou que tais religiões primitivas já vieram para cá misturadas com duas religiões superiores: o Islamismo e o Catolicismo.
A invasão islâmica na África e a catequese católica infiltraram nas religiões do chamado Continente Negro os seus elementos religiosos muito antes de que elas se transferissem para o Brasil. — Mas o Islamismo também? — estranhou o meu amigo. — Sim, o Maometanismo também.
Você quer um exemplo? Repare no uso dos turbantes. Sim, tal uso veio da Índia através dos maometanos que durante séculos dominaram a África, entendeu? Quero acrescentar que o fenômeno sincrético religioso afro-brasileiro entre os cultos africanos e o Catolicismo do Brasil colonial teve início no século 16, com a vinda dos primeiros negros para a Bahia. Desenvolveu-se lentamente nos séculos seguintes na total ausência do Espiritismo que aqui só chegou (a Codificação Kardeciana teve início com a publicação d’O LIVRO DOS ESPÍRITOS em 1857) pelo fim do século 19 e mesmo assim ficou a princípio restrito às camadas mais cultas pois os livros do Codificador estavam escritos em francês, só mais tarde traduzidos para o nosso idioma.
Portanto, o Espiritismo nada tem a ver com o sincretismo afro-brasileiro nem com a Umbanda. Evidentemente com isso não quero dizer não tenha eu, particularmente todo respeito para com esta seita; e todo amor para com os seus adeptos que, afinal de contas, são nossos irmãos em nome de Deus e, diante da Lei de Deus e das leis de nosso país, têm a liberdade de seguir esta ou aquela religião.
Mas — Umbanda é uma coisa e Espiritismo é outra, bem diferente.
— Mas eles, os umbandistas, também praticam a mediunidade — objetou o meu amigo.
— E daí? O mediunismo não é exclusividade do Espiritismo, não! Nem do Umbandismo. O fato mediúnico aparece em todas as religiões e até mesmo em meios não religiosos. Logo, embora o mediunismo seja comum à Umbanda e ao Espiritismo, isso não quer dizer sejam a mesma coisa. O Espiritismo é uma doutrina filosófica, espiritualista, de bases científicas comprovadas e com conseqüências morais ou religiosas.
— E esta doutrina não foi fundada pelo senhor Allan Kardec? — interrompeu-me de novo o amigo; assim sendo, se foi ele que a fundou, e se segue você esta doutrina, então você é Kardecista... Você é Espírita Kardecista.
— Nada mais falso, meu irmão... Nada mais errado... Kardec em absoluto fundou religião ou doutrina alguma. O Espiritismo não foi de modo algum uma criação, urna invenção ou mesmo uma descoberta de Kardec. Ele apenas codificou, quero dizer, ele apenas organizou, deu organização lógica, estrutura didática, corporificou, deu corpo a urna doutrina que, a rigor, é dos Espíritos. Você poderá dizer se quiser, Codificação Kardeciana, Codificação de Allan Kardec, se referindo as sim ao trabalho que ele teve de organizá-la, de corporificá-la lançando as chamadas obras básicas, dirigindo as pesquisas da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, dirigindo a publicação mensal da Revista Espírita, enfim, estudando os fenômenos mediúnicos com critério de um cientista e deles tirando as conclusões de ordem sobretudo moral.
— Ah... Então Espiritismo não é o mesmo que Kardecismo, não? Exclamou ele.
— Não. Rigorosamente falando, não. Não sou, como vê você, Kardecista... Sou apenas Espírita. A palavra já diz tudo. É perfeitamente dispensável o adjetivo (Kardecista) que aí está empregado erradamente.
— Mas você sabe que por este imenso Brasil, muita gente pensa como eu pensava
antes de ouvir esta sua explicação?
— Sim, eu sei disso. Até mesmo nos meios oficiais há esta confusão dizendo-se Espiritismo Kardecista para diferençar de Espiritismo Umbandista, o que não corresponde à realidade doutrinária. E para dirimir tais dúvidas, creio que os escritores, os jornalistas, os oradores, os conferencistas, os presidentes de Centros Espíritas que militam ativamente em nosso meio deveriam frisar em seus escritos e em suas oratórias, o verdadeiro significado das palavras para evitar tanta deturpação em torno do assunto, às vezes sendo a confusão feita de boa-fé, por ignorância; outras vezes com visível má-fé, para desfigurar a imagem do que de fato é a Doutrina Espírita. Daí a necessidade imperiosa do seu estudo, estudando-se sempre e cada vez mais as obras de Allan Kardec.

Nota da Editora: Mais detalhes no livro O ESPIRITISMO E AS DOUTRINAS ESPIRITUALISTAS do jornalista Deolindo Amorim. E também no livro UMBANDA EM JULGAMENTO, de Alfredo d’Alcântara.


Fonte
NA ROTA DO ANO 2000, por Celso Martins e Antonio F. Rodrigues, ed.ABC DO INTERIOR



“INFORMAÇÃO”:
REVISTA ESPÍRITA MENSAL
ANO XXX Nº351
Janeiro 2006
Publicada pelo Grupo Espírita “Casa do Caminho” -
Redação:
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