terça-feira, 20 de maio de 2014

RACISMO E ESPIRITISMO


Eugenio Lara
Nadie nace como quiere. Es una cuestión honda la del destino humano. Este mismo orgulloso, esquivo y
puritano, bien pudiera haber nacido en Africa, y el desdeñado hubiera nacido hecho un rubio nórdico. La
situación hubiera sido inversa ... Que piensen en ello aquellos que se sienten “Superiores” por tener alba la
piel. La superficie clara o oscura no indica ninguna superioridad o inferioridad.”
David Grossvater


1. INTRODUÇÃO
2. O RACISMO
3. AS RAÍZES DO RACISMO BRASILEIRO
4. “DEMOCRACIA RACIAL” E MISCIGENAÇÃO
5. AXÉ E NEGRITUDE
6. CONDICIONAMENTO PSICO-SOCIAL
7. O ESPIRITISMO E O RACISMO
8. KARDEC ERA RACISTA?
9. OS ESPÍRITAS E O RACISMO
10. RACISMO ATÁVICO
11. CONCLUSÃO
12. NOTAS
  1. BIBLIOGRAFIA

1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho é uma modesta abordagem do racismo e suas várias implicações, sob a ótica da filosofia espírita. São reflexões sobre a presença desse sistema sectário de pensamento na sociedade, e que tantos prejuízos tem trazido para a paz e a fraternidade entre os homens.
O que é o racismo? Como se dá sua presença de modo tão marcante na sociedade brasileira e no próprio movimento espírita? São algumas questões, dentre outras, que esse trabalho procura abordar, com a intenção de atingir os seguintes objetivos:
1. Abordar as raízes históricas do racismo e seus efeitos no comportamento das pessoas, segundo
condicionamentos psicossociais introjetados pela nossa cultura, amplamente influenciada por pré-conceitos de origem racista; a questão do racismo hoje e do movimento negro, procurando identificar algumas de suas influências no movimento espírita.
2. Tecer algumas críticas a determinadas conceituações e colocações de Espíritos e espíritas, ainda marcadas pelo religiosismo e a visão idealista do processo histórico, que escamoteia o verdadeiro sentido do papel do negro na história e na sociedade.
3. Analisar a posição de Allan Kardec em relação ao negro, sob o ponto de vista ético, estético e espiritual. Até que ponto o fundador do Espiritismo foi preconceituoso em relação a essa etnia? Teria ele sido racista em suas reflexões sobre a raça negra?

4. Expor a visão espírita:
a. Do homem como um cidadão do universo que é, transcendente à etnia, religião, nacionalidade, etc.
b. Da reencarnação, cuja concepção espírita contribui para a destruição dos preconceitos de casta e de cor.
2. O RACISMO
O racismo, segundo a acepção do “Novo Dicionário Aurélio” é “a doutrina que sustenta a superioridade de certas raças”. Enquanto sistema de pensamento, o racismo teve as suas primeiras teorizações no século passado, na França.
O Conde de Gobineau foi o principal teórico das teorias racistas. Sua obra, “Ensaio Sobre a Desigualdade das Raças Humanas” (1855), lançou as bases da teoria arianista, que considera a raça branca como a única pura e superior às demais, tomada como fundamento filosófico pelos nazistas, adeptos do pan-germanismo.
O racismo caracteriza-se como um sistema segregacionista por natureza, uma ideologia que prega a supremacia de um povo, de uma raça, ou mesmo de uma cultura sobre outras, expressando-se de diversas maneiras: em nível cultural, religioso, biológico. Na concepção de valores, e em nível institucional, legalizado.
É um fenômeno de caráter universal. Os judeus, na Antigüidade, comportavam-se de modo racista ao se
considerarem como o povo eleito pelo Deus-Jeová e ao discriminarem os outros povos, chamados por eles de gentios.

Para o romano, todo aquele que não participasse de sua cultura era chamado pejorativamente de bárbaro. Os espanhóis, que trucidaram os povos pré-colombianos, consideravam-nos como seres inferiores, o mesmo ocorrendo no Brasil com os bandeirantes portugueses em relação aos indígenas brasileiros.
Apesar de ser um sistema que não se limita somente à discriminação do negro, o racismo é hoje quase sinônimo de perseguição à raça negra, bastando se reportar ao extinto regime racista do apartheid, na África do Sul e o racismo brasileiro, marcante na concepção de valores e escamoteado pelo mito da “democracia racial”.
No Brasil, passados mais de 100 anos da promulgação da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, que libertou
(legalmente) os negros da escravidão, há muito ainda por ser conquistado a fim de que o negro tenha, de fato, sua dignidade garantida e respeitada.
3. AS RAÍZES DO RACISMO BRASILEIRO
As raízes do racismo brasileiro, que se caracteriza principalmente pela discriminação do branco sobre o negro, encontram-se no Brasil Colonial e se acham vinculados historicamente à escravatura.
A escravidão negra foi a solução do capitalismo comercial para a exploração das colônias, por tratar-se de mão-deobra barata, tornando-se o Brasil e diversas outras colônias, numa das molas mestras de todo o sistema econômico colonial.
Na medida em que o capitalismo europeu foi superando sua fase comercial e monopolista, para se constituir no capitalismo industrial, em meados do século passado, o antigo sistema colonial, mantido por Portugal e Espanha, duas superpotências em franco período de decadência, torna-se um grande obstáculo à livre circulação de mercadorias, agora industrializadas. A manufatura tende a ceder seu lugar à indústria e o comerciante, ao industrial.

A lógica do capital conduz à expansão de mercados. A mão-de-obra escrava, por ser barata, reduzia enormemente os custos indiretos da produção brasileira, cujos produtos, no mercado internacional, eram um dos mais baratos, concorrendo com os produtos de países europeus colonizadores. Era preciso acabar com a escravidão para que se abrissem novas frentes de mercado, de modo que os produtos brasileiros deixassem de concorrer com os europeus.
A Inglaterra, primeiro país a se industrializar, passa a pressionar Portugal para que elimine a escravidão no Brasil. Em conseqüência da invasão das tropas de Napoleão Bonaparte a Portugal, D. João VI e a família real portuguesa transferem-se para o Brasil em 1808. A Inglaterra dá todo o apoio a Portugal em troca da abertura dos portos e da extinção do tráfico negreiro.
Com a abertura dos portos, passam a surgir no Brasil diversas unidades produtivas. A Inglaterra e outros países começam a montar no Brasil as suas primeiras indústrias.
Diversos fatores contribuíram para a extinção da escravidão, notadamente os econômicos. Mas para extingui-los, foram necessários longos anos de luta, já que teve ardorosos defensores em amplos setores da camada social. Além de interesses econômicos, representados pelos senhores de engenho e posteriormente, pelos barões de café, havia também interesses de caráter psicológico. Para a classe dominante, ter um escravo era sinônimo de “status”, de prosperidade. A Igreja, dominante na época, pregava a idéia absurda de que a escravidão era algo “natural” porque Deus assim o permitia. Haja visto que a Igreja, ao lado dos traficantes, muito lucrou com a escravidão. Em Portugal, por exemplo, a Ordem de Cristo tinha participação ativa na partilha dos lucros do comércio de escravos. O tráfico negreiro era, sem dúvida, uma interessante fonte de enriquecimento.
Em 1850 é aprovada a Lei Euzébio de Queiróz, extinguindo o tráfico negreiro, o primeiro golpe certeiro no escravismo. O tráfico ainda persistiu durante muitos anos, à revelia da legislação e de todas as represálias da Inglaterra, que fiscalizava, perseguia e até afundava os navios negreiros. Com a aprovação dessa lei, a abolição da escravidão seria apenas uma questão de tempo.

Com a extinção do tráfico de escravos, a classe dos traficantes passa a investir seu capital acumulado em outros setores da economia, aplicando-os na abertura de empresas comerciais e financeiras. A partir da década de 50, inúmeras indústrias surgem e a Inglaterra passa a investir capital no Brasil.
A mão-de-obra escrava tendia, portanto, a se tornar escassa, criando um problema crônico para os senhores de engenho e para os barões de café, a nova aristocracia que surge a partir da década de 70, com a expansão da lavoura cafeeira. Após a decadência da cana-de-açúcar, do algodão e do tabaco, este último utilizado como moeda no comércio negreiro, o café vem se caracterizar como o grande produto de exportação e a última das grandes monoculturas.
À medida que o senso de valores da sociedade colonial evolui, a escravidão passa a ser considerada uma agressão à dignidade humana, perdendo assim sua sustentação moral. Além de todas as pressões internacionais, no Brasil o movimento abolicionista será o grande mediador dessa ânsia de transformação, de indignação generalizada dos setores mais politizados da sociedade.
Desde 1822, com a proclamação da Independência, o movimento abolicionista vinha conquistando um espaço de influenciação cada vez maior junto à opinião pública. De início, esse movimento se caracteriza pela reunião de intelectuais e profissionais liberais comprometidos com ideais humanitários. Mas, com o passar do tempo, irá assumir características políticas e até revolucionárias. Se de início agia na legalidade, a partir da década de 80 passa a praticar o que hoje chamaríamos de desobediência civil, agindo na ilegalidade, em espaços alternativos de atuação, praticando uma espécie de luta “underground”, incentivando fugas de escravos, financiando revoltas e apoiando a formação de quilombos.

Há de se considerar, contudo, em todo esse processo de emancipação, que o negro não foi um simples objeto. Ele tem de ser considerado como sujeito de sua própria história.
Com as recentes pesquisas historiográficas acerca do papel do negro nas rebeliões e na formação de quilombos, torna-se hoje insustentável a tese de que ele tivesse tipo um papel passivo e subalterno no processo de abolição da escravatura.
O quilombo, agrupamento alternativo que reunia escravos fugidos, índios, mestiços e até criminosos, foi o símbolo máximo da resistência e da revolta negra no Brasil colonial. O mais importante deles, o Quilombo de Palmares, foi uma grande confederação de quilombos, e chegou a reunir cerca de 20.000 quilombolas. Resistiu ao poder durante mais de 60 anos (de 1630 a 1695), sendo finalmente massacrado cruelmente por Domingos Jorge Velho e suas tropas, bandeirante responsável pelo assassinato de milhares de indígenas, e ainda considerado pela historia oficial como um dos “grandes” vultos da nossa história.
Como afirmamos no início, uma série de fatores contribuíram para a abolição da escravatura. Todavia, o golpe de misericórdia foi a imigração européia: solução encontrada pelos barões de café para suprir a escassez de mão-de-obra. Com o avanço das forças produtivas e das relações de produção, a velha ordem colonial não atendia mais aos interesses do capital, que passa a exigir uma mão-de-obra mais qualificada. Mesmo a importação de escravos do norte do país não conseguirá abastecer de mão-de-obra as lavouras cafeeiras e as novas unidades produtivas. A mão-de-obra escrava, além de ser cara e insuficiente, não atendia às necessidades das novas relações de produção, redundando o seu uso em um atraso econômico nas manufaturas existentes.
O imigrante europeu constituiu-se na grande solução desse problema de mão-de-obra. E as condições climáticas do sul do país favoreciam essa nova corrente migratória. O escravo torna-se obsoleto e a forma de trabalho assalariado passa a ser mais vantajosa para o patrão.

A partir de 1870, o Brasil será o único país do Ocidente a manter o regime de escravidão, significando com isso, um atraso econômico que ainda não foi superado. As pressões internacionais e nacionais se intensificam. O movimento abolicionista ganha mais força. Em 1871 é aprovada a Lei do Ventre-Livre. Hábil manobra do poder e que resultou num certo arrefecimento do abolicionismo, que ressurge com todo seu vigor a partir da década de 80 em todo o país. Em 1883, o movimento é unificado pela Confederação Abolicionista.
A enorme capacidade de persuasão dos abolicionistas, seu ativismo e idealismo, formam o grande catalisador da derrubada da ordem escravista. José do Patrocínio, o “Tigre da Abolição”, Joaquim Nabuco, Luís Gama, dentre outros, foram abolicionistas brilhantes, grandes lideranças urbanas, cuja atuação contribuiu significativamente para a abolição da escravidão. No plano da literatura, a obra poética de Castro Alves se constituirá numa grande contribuição à causa, quase do mesmo modo que a obra literária do escritor norte-americano Harriet Breecher Stow, “A Cabana do Pai Tomás” (1852).
Os movimentos de evasão, de fuga dos escravos se intensificam. Em 1884, no Ceará, os escravos são libertados. Falta apenas formalizar o fim da escravidão. Não há mais sustentação alguma para a sua existência.
Em 13 de maio de 1888, a Regente Princesa Isabel, que substituía seu pai, Dom Pedro II, afastado do trono por motivos de saúde, sanciona a lei nº 3.353, a Lei Áurea, composta de apenas dois artigos:
Artigo 1º _ É declarada extinta a escravidão no Brasil. Artigo 2º _ Revogam-se as disposições em contrário”. E com isso liberta quase um milhão de escravos em todo o País. Indubitavelmente, a abolição dos escravos foi o resultado lento e gradual de mudanças estruturais na economia internacional e nacional, oriundas da transição do capitalismo monopolista para o industrial.

Durante muito tempo a escravidão foi analisada sob um ponto de vista ingênuo. Sua abolição, fruto do idealismo dos abolicionistas e da misericórdia da Princesa Isabel, a “Redentora”. Essa versão ideológica da histórica ainda é ensinada nas escolas, segundo uma interpretação idealista do processo histórico, que considera os fatos históricos como entidades independentes, autônomas e os “grandes vultos” como sujeitos determinantes de toda a realidade histórica, sem considerar toda a dinâmica de seu processo de transformação.
Se de um lado a Lei Áurea libertou legalmente os negros-escravos, de outro, eles foram jogados pela política imigrantista e racista num mercado de trabalho hostil e incapaz de absorvê-los como mão-de-obra, em função de sua desqualificação e despreparo para concorrer com o imigrante europeu. Como mão-de-obra desqualificada, ao negro restava os trabalhos mais insalubres. Daí as causas de um certo “parasitismo” em comparação com a mulher negra, que conseguia mais facilmente emprego como lavadeira, empregada, faxineira e outros serviços domésticos.
Além das barreiras econômicas, havia para o negro recém-saído da escravidão, enormes barreiras ideológicas criadas pela ideologia racista, quase que intransponíveis. Parafraseando Joel Rufino dos Santos, os negros de hoje “são ‘despossuídos históricos, descendem de pessoas que nunca tiveram nada, nem sequer a posse do seu próprio corpo”.1
4. “DEMOCRACIA RACIAL” E MISCIGENAÇÃO
Preto só come carne quando morde a língua”, “o preto, quando não apronta na entrada, apronta na saída”, “o preto é bem dotado”, “a negra é boa prá transar mas não serve para casar”, “é um negro de alma branca”, “serviço mal feito é serviço de preto”, “o preto é indolente, preguiçoso, não gosta de trabalhar”, neguinho, pretinho, tição, negão, crioulo”, etc. e etc. Frases, piadas, expressões e pechas como essas, são por demais conhecidas. Expressam bem o quanto o brasileiro é preconceituoso.
O racismo brasileiro, ainda escamoteado e acobertado pelo mito da “democracia racial”, é um estigma, uma nódoa presente na mente do povo brasileiro e que faz parte do cotidiano de todos nós.

Como vimos, as raízes do racismo contra o negro, no Brasil, também têm sua origem no período da escravidão. Mas podemos encontrar o racismo em teorias, em formulações filosóficas que, pelo menos em nosso País, fundamentaram durante muito tempo o preconceito racial e a suposta superioridade do branco.
É o caso da teoria arianista da miscigenação, que considerava a inferioridade econômica e cultural do Brasil como conseqüência da miscigenação, da mistura entre as raças.
Raimundo Nina Rodrigues, ensaísta, etnógrafo e sociólogo, um dos primeiros a estudar o comportamento dos negros brasileiros, e Sílvio Romero, ensaísta e historiador, foram, no começo do século, os principais elaboradores da teoria arianista, que considera a raça branca como sendo superior às demais.
A partir da década de 30, com o lançamento da célebre obra “Casa Grande e Senzala” (1933), o sociólogo Gilberto Freyre passa a questionar a tese arianista e propõe a tese da “democracia racial brasileira”. A miscigenação, ao invés de ter sido um mal, foi um bem, segundo o sociólogo, proporcionando o convívio democrático entre as raças, sem conflitos, sem discriminação. Tese ainda predominante nos meios culturais e freqüentemente disseminada nos meios de comunicação. Será a partir de estudos elaborados por Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, dentre outros, que o mito da “democracia racial” vai ser revisto, colocando a situação do negro no Brasil sob uma ótica mais crítica, sem romantismos, tentando esmiuçar as contradições do contexto de discriminação racial em que o negro se acha inserido, desde a escravidão.
5. AXÉ E NEGRITUDE
Após a década de 70, principalmente em seu final, o movimento negro no Brasil se dinamiza. A exemplo do “black power” norte-americano no final da década de 60, o movimento negro brasileiro passa a valorizar as raízes de sua própria cultura. É a idéia de “negritude”, uma espécie de postura quase que estética em seu bojo, com relação à cultura negra. É o negro se assumindo como ser, assumindo sua aparência, etnia, suas verdadeiras raízes, sua cultura. Escolas de capoeira, afoxés, penteados e roupas características da cultura negra, constituem-se num movimento que culminou com a comemoração dos 100 anos de libertação dos escravos.
Reivindica-se o valor do negro na história, a comemoração da libertação dos escravos no dia da morte de Ganga Zumbi, o grande líder negro de Palmares, em 20 de novembro, que é considerado pelos movimentos negros de cunho mais progressista, como o Dia da Consciência Negra.

Grandes avanços foram conquistados pelos movimento negro, desde a época de Getúlio Vargas, quando surgiu de modo mais destacado, significando um maior nível de consciência da exploração do negro, de seus direitos. Há, sem dúvida, em função desse maior nível de politização e conscientização, uma evidente divisão no movimento negro. Os movimentos atrelados ao poder ainda se mantêm fiéis às tradições comemorativas do 13 de maio, enquanto outros setores desse mesmo movimento, com maior nível de consciência, questionam a forma como tem sido comemorada a “libertação” dos negros. No dia 13 de maio de 1988, na capital, em São Paulo a comemoração da libertação dos escravos se dividiu em dois grupos distintos. De um lado, os negros do “13 de maio”, e de outro, os negros do “20 de novembro”, evidenciando o grau de divisão existente, sem significar, contudo, um retrocesso.
Em todo o mundo, não dá mais para suportar regimes racistas como foi o do “apartheid”, que hoje é apenas uma referência vergonhosa na história da humanidade. Para eliminar esse câncer, diversos movimentos se engajaram em defesa dos direitos humanos. Campanhas de solidariedade, concertos de rock contra o “apartheid” foram realizados, em apoio à luta do ex-preso político Nelson Mandela, o grande ativista negro sul-africano, guindado à condição de líder de sua nação, com a vitória nas eleições multirraciais.
Comemorar o “13 de maio” ou o “20 de novembro” é denunciar o grau de exploração do negro em nossa sociedade, é resgatar o seu valor na cultura. Axé! cantam os negros em todos os meios de comunicação.
6. CONDICIONAMENTO PSICO-SOCIAL
O racismo brasileiro é também camuflado, escamoteado pela ideologia dominante de que todos “são iguais”, com “iguais” oportunidades e direitos, e portanto, se há negros que não chegam “lá”, não ascendem na escala social, é porque são preguiçosos e não gostam de trabalhar. O próprio negro, se fracassa, é considerado culpado apenas pelo fato de ser de pele escura, e por isso, “inferior” ao branco. Para demonstrar essa falácia da sociedade racista, tomam-se como exemplo de comprovação de sua ideologia,
indivíduos que conseguiram “subir na vida”. O caso de Pelé é o mais evidente. Ele representa hoje um dos símbolos máximos da “inexistência” de preconceito e discriminação raciais, “um negro de alma branca”. Mesmo aqueles que negam o rótulo de racista, em função de uma espécie de condicionamento psico-social, cultural, assumem comportamentos racistas. É o branco que se julga superior. É o negro que, introjetando a discriminação racial, se acha inferior e incapaz.
Os fatores sócio-culturais influenciam o comportamento e produzem, indubitavelmente, condicionamentos psicológicos, complexos em seu dimensionamento. Devido a esses condicionamentos, o negro se nega a si mesmo.
Para muitos, é o caso do cantor negro, ou ex-negro, Michael Jackson, que alisou o cabelo, fez plástica para mudar seus traços fisionômicos e embranqueceu, segundo ele, em função de uma doença da pele. Quem compara esse cantor norte-americano dos tempos do conjunto Jackson Five com o de hoje, vê uma diferença brutal. Antes era negro, atualmente é quase branco.
Nos Estados Unidos, como no Brasil, negro só é mesmo famoso através da música ou do esporte. Como cantor de rock ou de samba, jogador de futebol, basquete ou lutador de boxe. Vide o exemplo do lutador brasileiro Maguila, que se tornou famoso da noite para o dia.
O racismo brasileiro é ainda escamoteado por diversos símbolos criados pelo mito da “democracia racial”. A mulata, o samba, o carnaval, a feijoada, o futebol, orgulhos de nossa cultura, apresentados como uma espécie de ícone, são componentes simbólicos de uma cultura hipócrita que não se assume como racista. No entanto, o modelo brasileiro de beleza não é a mulata. Basta ver a quantidade de mulatas que ganhou o concurso de miss Brasil. É quase zero. O modelo que nos é passado é o da animadora Xuxa, a apresentadora e escritora Bruna Lombardi, a atriz e ex-miss Brasil, Vera Ficher, todas brancas. Na música, mesmo com a moda do pagode, do rap, do funk e do reggae, o que mais se ouve é a música enlatada norte-americana, da pior qualidade, e feita em sua grande maioria por brancos. A contribuição do negro para a cultura, de um modo geral, ainda é considerada secundária, restringindo-se à música, à culinária, nada mais.
Em 1951, com a aprovação da Lei Afonso Arinos, a discriminação racial foi colocada na ilegalidade, sem direito a fiança. Todavia, apesar dessa lei, a violência contra os negros prossegue. A distância entre “a casa grande e a senzala” ainda não foi superada. Basta ver no mercado de trabalho, a discriminação que existe, onde os não negros conseguem os melhores postos. Em diversas áreas profissionais, o trabalhador negro possui, amiúde, um salário inferior ao do branco. E quem não tiver boa aparência, não consegue a vaga. Ou seja, as exigências curriculares mostram de modo velado a discriminação racial. É muito alta a quantidade de negros que são presos e condenados. Já os “crimes do colarinho branco”, são quase impossíveis de serem reprimidos.
Foi somente a partir da década de 40 que o negro passou a ser incorporado de modo mais efetivo a um novo mercado de trabalho, isso após o intenso processo de industrialização iniciado durante a ditadura Vargas. As oportunidades apenas aumentam, já que anteriormente, em função de uma política racista, de apoio e proteção aos imigrantes europeus, havia um fosso entre os brancos trabalhadores e os negros ex-escravos. Todavia, o negro é ainda o que se encontra mais sujeito ao desemprego. não em função de sua suposta incapacidade ou inferioridade, mas por condicionantes sócio-econômicos, oriundos do passado escravocrata. Ainda hoje, no mercado de trabalho da Grande São Paulo, é muito comum a associação dos negros e mulatos aos nordestinos, chamados pejorativamente de “cabecinhas” ou “baianos”2.
De todos os lados o negro é vítima do preconceito e da discriminação raciais, constituindo-se no caso citado, em uma dupla discriminação, ao negro e ao nordestino. E nem seria necessário de se fazer uma pesquisa mais criteriosa, a fim de se constatar que na burguesia, quase inexistem negros. No máximo, eles conseguem se situar na camada média da sociedade, daí para baixo. Obviamente as exceções existem, como no caso de Pelé, Maguila, dos músicos Gilberto Gil e Jorge Ben Jor, etc. mas cuja ascensão social, como vimos, está associada, quase sempre, diretamente ao esporte ou à música.
7. O ESPIRITISMO E O RACISMO
A destruição dos preconceitos de casta e de cor é um dos objetivos do Espiritismo. Isso é bem claro na kardequiana.
O progresso da civilização passa, necessariamente, pela abolição de toda e qualquer forma de preconceito. O Espiritismo, “destruindo os preconceitos de seita, de casta e de cor, ensina aos homens a grande solidariedade que os deve unir como irmãos.”3
Nesse aspecto, do progresso da Humanidade, o Espiritismo pode ter uma influência muito importante, devido à ampla visão que oferece, do homem, da sociedade e do cosmos. Antes de se achar sujeito a determinada cultura, nacionalidade, etnia ou religião, o homem é um ser cósmico, um cidadão do universo. Esse princípio, se bem compreendido, faz ver a realidade sob uma outra ótica, sem os preconceitos generalizados que se encontram ainda arraigados na alma humana. Para os Espíritos elevados, “a pátria é o Universo; na Terra, é aquela em que possuem maior número de pessoas simpáticas.”4
Pelo entendimento dos mecanismos que regem a lei da reencarnação, a superioridade que certos grupos étnicos atribuem a si torna-se insustentável e até ridícula. Esse tipo de postura discriminatória, existente nas relações entre os diferentes grupos étnicos, ao lado de diversos fatores de ordem política e econômica, tem gerado as desigualdades sociais no nosso planeta, constituindo-se num enorme obstáculo para a construção de uma sociedade mais fraterna e igualitária. Afirmaram os Espíritos a Allan Kardec que essas desigualdades um dia desaparecerão, “juntamente com a predominância do orgulho e do egoísmo, restando tão somente a desigualdade de mérito. Chegará um dia em que os membros da grande família dos filhos de Deus não mais se olharão como de sangue mais ou menos puro, pois somente o Espírito é mais puro ou menos puro, e isso não depende da posição social.”5 Segundo Kardec, todos os homens “são submetidos às mesmas leis naturais, todos nascem com a mesma fragilidade, estão sujeitos às mesmas dores e o corpo do rico se destrói como o do pobre. Deus não concedeu, portanto, superioridade natural a nenhum homem, nem pelo nascimento, nem pela morte, todos são iguais diante d’Ele.”6
A mentalidade racista produziu, na história da humanidade, situações extremadas de discriminação racial, como a escravidão dos negros africanos, considerada pelo Espiritismo como sendo contrária à Natureza, “pois assemelha o homem ao bruto e o degrada moral e fisicamente.”7 “Os homens têm considerado, há muito, certas raças humanas como animais domesticáveis, munidos de braços e de mãos, e se julgam no direito de vender os seus membros como bestas de carga. Consideram-se de sangue mais puro. Insensatos, que não enxergam além da matéria! Não é o sangue que deve ser mais ou menos puro, mas o Espírito.”8
A idéia de que o homem possa encarnar como branco, negro, mulato ou índio, estabelece uma ruptura com o preconceito e a discriminação raciais. Tanto que até hoje, na Inglaterra, muitos adeptos do Neo-espiritualismo rejeitam a tese da reencarnação, por não admitirem a possibilidade de terem tido encarnações em posições inferiores quanto à raça e à condição social. Afinal, como se sentiria um indivíduo de mentalidade racista encarnado em uma raça que considere inferior? Nesse sentido, as questões que reproduzimos abaixo são bem elucidativas.
205. Segundo certas pessoas, a doutrina da reencarnação parece destruir os laços de família, fazendo-os remontar às existências anteriores.
_ Ela os amplia, em vez de destruí-los. Baseando-se o parentesco em afeições anteriores, os laços que unem os membros de uma mesma família são menos precários. A reencarnação amplia os deveres de fraternidade, pois no vosso vizinho ou no vosso criado pode encontrar-se um Espírito que foi de vosso sangue.
205-a. Ela diminui, entretanto, a importância que alguns atribuem à filiação, porque se pode ter tido como pai um Espírito que pertencia a uma outra raça, ou que tivesse vivido em condição bem diversa?
_ É verdade, mas essa importância se baseia no orgulho. O que a maioria honra nos antepassados são os títulos, a classe, a fortuna. Este coraria de haver tido como avô um sapateiro honesto, e se vangloria de descender de um gentilhomem debochado. Mas digam ou façam o que quiserem, não impedirão que as coisas sejam como são, porque Deus não regulou as leis da Natureza pela vossa vaidade.”9
A diversidade das raças, condição natural do aparecimento do homem na Terra, resultado “do clima, da vida e dos hábitos”10, não significa, de modo algum, que os homens estabeleçam juízos de valor discriminatório, quanto à origem étnica de determinados grupos sociais. Para o Espiritismo, todos os homens “são irmãos em Deus, porque são animados pelo mesmo espírito e tendem para o mesmo alvo.”11
O preconceito e a discriminação raciais constituem também o grande conjunto de circunstâncias existenciais a que os Espíritos reencarnantes estão sujeitos. Um Espírito, reencarnado num corpo de origem negra, estará sujeito à discriminação e isso lhe será uma condição, uma contigência evolutiva a ser superada. “Para uns pode ser uma expiação, para outros uma missão”12, uma nova oportunidade de aprendizado, já que as experiências que ele experimentará como negro, serão bem diferentes das de outro que reencarne como branco, em função das desigualdades sociais.
Essas desigualdades são um mal que precisa ser eliminado. Todavia, devido à Lei de Progresso, também são um bem. Ou seja, são utilizadas sabiamente pela Natureza, no aprimoramento intelecto-moral dos Espíritos. Portanto, dentro da concepção espírita, não se sustentam visões fatalistas, “cármicas”, que visualizem Espíritos reencarnados em corpos de origem negra como culpados, algozes do passado. A culpa, se houver, será apenas uma condição psicológica, imposta pela própria consciência do Espírito reencarnante, sem relação alguma com arbitrariedades supostamente delegadas pelo “plano espiritual superior”.
São essas concepções fatalistas, baseadas na culpa e no pecado, que levam muitos espíritas e Espíritos a considerarem os escravos negros como inquisidores, cruzados e senhores feudais reencarnados, ou judeus
massacrados pelos nazistas como hebreus reencarnados. Essas concepções têm mais a ver com a formação religiosa de certos espíritas e Espíritos do que com a visão evolucionista do Espiritismo. Trata-se de uma concepção distorcida da reencarnação que, ao invés de servir como um poderoso instrumento de compreensão do processo evolutivo dos seres e das coisas, funciona como fator de alienação, de ocultamento da realidade.
Com que finalidade um senhor de engenho, por exemplo, tem de reencarnar como negro e sofrer as mesmas dores que fez os escravos sob o seu poder sofrerem? Seria assim o mecanismo da reencarnação?
Os seres humanos não são coisas, objetos que, sujeitos a uma lei de causa e efeito independente de sua realidade intelecto-moral, tenham que se submeter a reações esquemáticas, cartesianas. Há uma lógica no processo palingenésico, mas ela está longe de ser uma lógica mecanicista. Ao contrário, a concepção espírita da palingenesia nos leva a pensar o processo evolutivo como um continuum caótico, dialético, contraditório. Isso não significa que inexista uma ordem, necessária e inexorável, ainda desconhecida em sua estrutura básica e no seu detalhamento.
Aquele senhor de engenho, pela sua formação, pela sua inteligência, pode contribuir muito mais para si e para outros, se concretizar o seu arrependimento na reformulação do próprio processo evolutivo. Ele poderá reencarnar, por exemplo, como um negro, que sentirá a ânsia, a paixão de lutar pela libertação de sua raça, de modo que muitos benefícios poderá trazer para a eliminação do racismo. Se tiver vocação pela política, poderá lutar de modo perseverante a favor da abolição de qualquer resquício, nas leis e na cultura, de preconceitos contra a raça negra, beneficiando assim,
indiretamente, aqueles que ele próprio prejudicou em outras existências. E assim por diante.
As variáveis são muitas, principalmente por que estamos lidando com seres, cuja liberdade volitiva os afasta de qualquer esquema cármico, a não ser que eles mesmos prefiram seguir, por algum processo de culpa ainda muito pouco esclarecido, um caminho onde possam vir a expiar a mesma dor que em outros eles provocaram, a fim de sentir o mal “na mesma pele”. É também um caminho possível, mas que não se constitui em lei, em regra, em um princípio que sirva a todos os seres. Foi o caminho escolhido por determinado Espírito, apenas isso.
Uma mesma causa pode gerar uma infinidade de efeitos. Isso em relação a objetos. Já em relação às pessoas, aí a situação se torna ainda mais complexa. A dificuldade de se equacionar, no caso em questão, o fenômeno palingenésico, se amplia. Ainda mais por que é ele um fenômeno pra lá de fractal. São muitos os componentes, os fatores de influenciação extremamente variáveis. Trata-se de uma equação com n incógnitas.
Por aí dá para se perceber que a visão mesquinha e rasteira do negro como uma criatura supostamente inferior, apenas por que nele se encontra reencarnado um espírito “culpado”, não se coaduna com a filosofia espírita, libertária por natureza. É como se reproduzíssemos o racismo numa nova versão, numa espécie de racismo cármico, que iria justificar a segregação racial, como foi e ainda é feito em alguns países. Basta ver os conflitos étnicos que há muitos séculos existem na Índia, desde o tempo dos brâmanes, passando pela época de Gandhi até hoje. É a reencarnação a serviço do racismo.
Uma doutrina de liberdade, como a espírita, não compactua com nenhuma ideologia que vise a discriminação racial entre os grupos sociais. O sectarismo racial, segundo o Espiritismo, tende a se tornar coisa do passado. As pessoas e as nações evoluem. Segundo os Espíritos, “os mundos também se acham submetidos à lei do progresso. Todos começaram como o vosso, por um estado inferior, e a Terra mesma sofrerá uma transformação semelhante, tornando-se um paraíso terrestre, quando os homens se fizerem bons.”13 À medida que a humanidade melhora em inteligência e moralidade, todas as formas de preconceito e segregação tenderão a desaparecer definitivamente. Nesse aspecto, o comentário de Kardec à questão citada é bem oportuno: “Assim, as raças que atualmente povoam a Terra desaparecerão um dia e
serão substituídas por seres mais e mais perfeitos. Essas raças transformadas sucederão à atual, como esta sucedeu a outras que eram mais grosseiras.”14
Portando, é dever dos espíritas, imbuídos pelo ideal renovador do Espiritismo, lutar por uma sociedade mais justa e igualitária, onde o negro e todos os grupos étnicos oprimidos tenham os seus direitos garantidos e respeitados. Como afirmou o sociólogo Florestan Fernandes, o negro é a “pedra de toque da revolução democrática na sociedade brasileira.”15 A luta pela verdadeira democracia racial, é uma luta que interessa não somente ao negro, mas a todos os setores progressistas, inclusive aos espíritas, que estejam efetivamente comprometidos com o processo de transformação intelecto-moral da sociedade.
8. KARDEC ERA RACISTA?
Esta é uma questão que tem vindo à baila no movimento espírita, em função de alguns textos de Allan Kardec acerca da raça negra, contidos na Revista Espírita (RE) e em Obras Póstumas.
Na RE de abril de 1862, no texto intitulado “Frenologia Espiritualista e Espírita _ Perfectibilidade da Raça Negra”, Kardec procura relacionar o Espiritismo com a Frenologia, segundo uma interpretação espiritualista dessa antiga ciência.
No tempo do fundador do Espiritismo, a Frenologia era uma ciência que estava em voga e consistia no estudo das faculdades humanas a partir da configuração craniana. Desenvolvida pelo médico e anatomista alemão Franz Josef Gall (1758-1828), chegou a causar uma certa polêmica nos meios acadêmicos da época.
Apesar dessa ciência ser hoje totalmente ultrapassada, interessa-nos algumas conclusões do fundador do Espiritismo.
Nesse texto, Kardec procura demonstrar que a raça negra é inferior pelo fato dela abrigar Espíritos imperfeitos, considerando a supremacia do espírito sobre o corpo. Já os frenologistas, interpretavam essa inferioridade pela ótica do materialismo, descartando a idéia da alma.
Kardec traça uma correlação entre o espírito e o corpo, concluindo que a raça negra, enquanto etnia, jamais atingiria os níveis de perfeição moral das raças caucásicas. Por sua vez, os Espíritos encarnados na raça negra poderiam chegar, segundo ele, ao mesmo nível da caucásica, devido à Lei de Progresso.
Pela argumentação de Kardec, nota-se que ele era adepto do Eurocentrismo, ideologia sectária que predominou no século 19, na Europa, e que considerava a cultura européia como a mais evoluída. E, conseqüentemente, numa correlação étnica, a raça branca caucasiana seria a raça mais evoluída, superior à negra e à amarela.
Essa colocação torna-se mais evidente na “Teoria da Beleza”, contida em Obras Póstumas, onde Kardec procura formular uma teoria estética que se caracterizaria pela configuração de um ideal de beleza em conformidade com a Lei de Progresso, aplicada no nível da evolução material. Ele se apoia em um texto de Charles Richard, desconhecido pesquisador inglês, intitulado “As Revoluções Inevitáveis no Globo e na Humanidade”, que aborda a tese da perfectibilidade, da evolução formal da raça humana e de sua beleza fisionômica. Richard cita exemplos comparativos de fisionomias de personalidades conhecidas da história da humanidade, como Júlio César, Brútus, Cícero, Lívia, a filha de Agripina, Mossalina, etc. e analisa a fealdade do homem primitivo, até a relativa beleza do homem moderno.
Aproveitando a contribuição de Richard, Kardec parte do princípio da influência do Espírito sobre o corpo, influência intelecto-moral, que se expressa no formato da matéria corporal. Segundo ele, na medida em que o Espírito evolui, a matéria vai sofrendo as conseqüências dessa evolução, de modo que possa se adaptar e se adequar, conformando-se ao estágio evolutivo do Espírito encarnado. Daí Kardec concluir que o ideal de beleza seria o dos Espíritos mais elevados, dos Espíritos puros.
Quanto à raça negra _ e é esse o aspecto que nos chama mais a atenção _ Kardec a considera primitiva, imperfeita, feia e anti-estética. Muito aquém de um ideal absoluto de beleza.
Na opinião abalisada do fundador do Espiritismo, sob a ótica da beleza corporal, os brancos são mais belos e superiores ao negro, cujos “traços grosseiros, os lábios grossos, acusam a materialidade dos instintos. Podem perfeitamente exprimir as paixões violentas, mas não se prestariam às nuanças delicadas do sentimento e à suavidade de um Espírito evoluído.”16 E conclui: “eis porque podemos, sem fatuidade, julgarmo-nos mais belos que o negro e o hotentote.”17
Bastariam esses dois textos para colocar Kardec em situação delicada perante o movimento negro. Todavia, ele era um homem de seu tempo e sujeito também às injunções culturais, ao sistema de valores de sua época. Cabe lembrar ainda que as teses arianistas do conde Gobineau, citadas no início, lhe são contemporâneas.
Allan Kardec tinha posições bem reacionárias em relação à mulher, ao socialismo e no caso em questão, ao negro, como se pode observar em seus escritos na Revista Espírita. Todo homem é prisioneiro de sua época, e por mais larga a visão que possua, sempre pode-se notar elementos datados em suas ações e reflexões. O fundador do Espiritismo não passou incólume a essa regra. Antes dele, na França, já havia a Sociedade de Amigos do Negro, sendo o líder revolucionário Robespierre (1758-1794), seu conterrâneo, um dos expoentes na luta contra o racismo, a discriminação racial e o tráfico de escravos. Esse aspecto da luta humanista dos iluministas, assim como determinadas reflexões sobre a questão do racismo _ bem explícitas na obra de Jean Jacques Rousseau _ infelizmente não foram incorporadas por Kardec, mesmo tendo sido ele muito influenciado pelas teses iluministas.
Mesmo partindo de um sentido estético duvidoso, para desembocar numa conclusão ética da tipologia do negro, enquanto biotipo supostamente inferior ao branco, isso não significa, de modo algum, que Kardec fosse racista. Isso seria contrário aos seus princípios éticos e humanistas bem manifestos na sua produção intelectual.
O negro do século 19 não é igual ao negro de hoje, pois com o advento da civilização e da urbanização das cidades, os negros africanos e de outros países convivem em grupos sociais aptos para a encarnação de Espíritos de maior porte intelectual, em função das leis de afinidade que regem o processo palingenésico.
Há de se considerar ainda que, no século passado, o conhecimento dos europeus sobre a cultura africana era escasso. Sociedades africanas de características totêmicas coexistiam nessa época, com culturas alhures bem organizadas, com uma forma notável de organização estatal, com rei, ministros, militares e funcionários. O negro não era tão primitivo assim como pensava Allan Kardec.
A visão kardequia do negro tem de ser considerada segundo o contexto histórico em que foi formulada. Seria incorreto, insistimos, sob o ponto de vista espírita, rotular Allan Kardec de racista, pura e simplesmente. Essa palavra possui uma carga semântica muito forte, inadequada para definir suas posições. Seria o mesmo que taxá-lo de machista, devido a suas posições em relação à mulher ou de direitista e ultra-reacionário, pelas posições contrárias ao socialismo e ao movimento proletário francês.
Todavia, não dá para “dourar a pílula” e ser condescendente com o fundador do Espiritismo. Ele manifestou,
explicitamente, um preconceito em relação ao negro. Longe de ser racista, podemos afirmar que ele foi preconceituoso para com essa etnia. Mas, por outro lado, não há nenhum indício de que ele tenha discriminado algum indivíduo ou grupo de origem negra, seja no movimento espírita ou fora dele.
Há, é claro, uma certa dificuldade teórica em separar racismo de preconceito racial e discriminação racial. A princípio, o preconceito e a discriminação raciais seriam uma decorrência do racismo enquanto ideologia e sistema de pensamento. No entanto, há de se considerar ainda a brutal diferença entre o comportamento de um membro da seita racista norte-americana Ku-Klux-Klan e o de um homem comum debochado que gosta de contar piadas de negro. Um punk skinhead é capaz de espancar e matar um homem apenas por ser negro ou judeu, enquanto o outro, em função da cultura de tonalidade racista do qual é subproduto, não passaria da piadinha jocosa e cheia de preconceito.
Apesar da atitude preconceituosa de Kardec em relação ao negro, fruto do contexto em que viveu, sua obra sai ilesa de todas as críticas no sentido ético, de discriminação e preconceito a determinada etnia. A kardequiana é muito maior do que qualquer triagem filosófica que possa ser feita, imperfeita como toda obra humana, mas coerente em seus fundamentos e tão atual a ponto de oferecer à sociedade elementos indispensáveis na luta contra o racismo.
9. OS ESPÍRITAS E O RACISMO
A escravidão tem sido encarada por uma grande parte dos espíritas como uma expiação “cármica”, um acerto de contas com a Divindade, sem considerar aspectos sócio-econômicos e políticos, e sem perceber a presença da ideologia racista por detrás das injustiças cometidas contra a raça negra.
Isso pode ser observado na obra do Espírito Humberto de Campos, “Brasil Coração do Mundo Pátria do Evangelho”, psicografada pelo médium Francisco Cândido Xavier e lançada em 1938. Esta obra foi tomada como fundamento ideológico e bússola do movimento espírita oficial brasileiro, especialmente pela Federação Espírita Brasileira (FEB), em suas atividades missioneiras. Nessa obra é mais do que evidente a predominância de uma visão distorcida e metafísica da história, como se esta estivesse subordinada diretamente aos desígnios do “plano espiritual superior”.
Narra o Espírito Humberto de Campos que um tal de anjo Ismael, considerado por ele como o suposto guia espiritual do Brasil, em uma de suas audiências oficiais com o “Cordeiro de Deus” (Jesus), deixa transparecer sua “angelical amargura”, ao expor ao “Cordeiro”, sua preocupação para com a escravidão negra. O “Cordeiro”, com toda sua magnânima serenidade, acalma Ismael, dizendo-lhe que “se não podemos tolher-lhes a liberdade, também não podemos esquecer que existe o instituto imortal da justiça divina, onde cada qual receberá de conformidade com os seus atos.
Havia eu determinado que a Terra do Cruzeiro se povoasse de raças humildes do planeta, buscando-se a colaboração dos povos sofredores das regiões africanas; todavia, para que essa cooperação fosse efetivada sem o atrito das armas, aproximei Portugal daquelas raças sofredoras, sem violências de qualquer natureza. A colaboração africana deveria, pois, verificar-se sem abalos perniciosos, no capítulo das minhas amorosas determinações.”18
Afirma o “Cordeiro” que devido “à educação condenável e deficiente”19 do homem branco, seus desígnios não estavam sendo cumpridos, e conclui: “os que praticarem o nefando comércio sofrerão, igualmente, o mesmo martírio, nos dias do futuro, quando forem também vendidos e flagelados em identidade de circunstâncias (...) Colocarei a minha luz sobre essas sombras, amenizando tão dolorosas crueldades. Prossegue com as tuas renúncias em favor do Evangelho e confia na vitória da Providência Divina.“20
Ismael, insatisfeito, ainda insiste e pergunta ao “divino Cordeiro”, se não haveria possibilidade de “orientar a política dominante, no sentido de se purificar o ambiente moral da Terra de Santa Cruz.”21 O “Cordeiro” responde que a ninguém cabe cercear os atos de outrem e repete: “cada um será justiçado na pauta de suas próprias obras.”22 Faz ainda referência aos portugueses colonizadores como o povo remanescente dos antigos fenícios da antigüidade, hoje afetados pelo orgulho oriundo da riqueza acumulada com as conquistas, e finaliza sua pregação dizendo a Ismael: “se não nos é possível cercear o arbítrio livre das almas, poderemos mudar o curso dos acontecimentos, a fim de que o povo lusitano aprenda, na dor e na miséria, as lições sagradas da experiência e da vida.”23
Encerrada a audiência, Ismael retorna à luta, “cheio de fervorosa coragem, e os acontecimentos foram modificados”24 pelo “poder magnânimo e misericordioso” do Cristo, o “Cordeiro de Deus”.
Conforme a narração do Espírito Humberto de Campos, foi dos “ombros flagelados” dos negros que nasceram “lições comovedoras, imunizando todos os espíritos contra os excessos do imperialismo e do orgulho injustificáveis das outras nações do planeta, dotando-se a alma brasileira dos mais belos sentimentos de fraternidade, de ternura e de perdão.”25
E por que teriam os negros sofrido tanto com a escravidão? Muito simples. Os escravos seriam, segundo Humberto, “os antigos batalhadores das cruzadas, senhores feudais da Idade Média, padres e inquisidores, espíritos rebeldes e revoltados, perdidos nos caminhos cheios da treva das suas consciências polutas.”26
Seguindo a lógica desse raciocínio “cármico”, os negros sul-africanos, vítimas durante muitas décadas do apartheid, do racismo legalizado, seriam quase sem sombra de dúvida, os traficantes de escravos, os senhores de engenho, os capitães do mato, todos agora reencarnados nesse país, para sofrerem as conseqüências de seus próprios atos. Posição insustentável, como vimos, à luz da filosofia científica do Espiritismo. Interessante é que Humberto de Campos não faz menção aos índios, vítimas de hediondo genocídio causado pelos bandeirantes portugueses. E os milhões de povos indígenas trucidados pelos espanhóis? E a cultura inca, maia e asteca, todas trucidadas também pelos imperialistas de Castela? Teriam sido algozes do passado? Essa interpretação contábil do processo evolutivo dos seres e dos povos, perde-se numa cadeia sem fim, num emaranhado de projeções mecanicistas das circunstâncias históricas. Quem teria atirado a primeira pedra? Aonde a origem de todo esse conflito existencial?
No movimento espírita, as análises que têm sido feitas da questão do racismo e da escravidão negra, deixam transparecer as influências da teoria arianista, da visão positivista e idealista da história, que desconsidera os fatos em sua dinâmica, em suas contradições. É só observar a grande maioria dos periódicos espíritas, que em 1988, ano do centenário da abolição, publicaram chamadas, ilustrações e artigos de consistência duvidosa. Muitas destas publicações deram em sua primeira página, a foto da “Redentora”, da Princesa Isabel, considerada a libertadora dos escravos, mas que na verdade, no processo de desagregação da ordem escravista, teve um papel subalterno e secundário. Já Humberto sustenta que a “Redentora” foi verdadeiramente missionária, que reencarnou “com a tarefa definida no trabalho abençoado da abolição.”27 Talvez, devido a essa tarefa supostamente assumida por Isabel no mundo dos Espíritos, é que D. Pedro II se afasta do trono “por motivos de saúde”, deixando-o vago (!?). Na narração de Humberto,
nota-se que os Espíritos teriam armado um esquema de bastidores, a fim de afastar o imperador e permitir a entrada, novamente em cena, da princesa pela terceira vez, para assinar A Lei Áurea. É até possível que os Espíritos tenham provocado o afastamento de D. Pedro II do trono. No entanto, é pura ingenuidade considerar a Princesa Isabel como a grande protagonista desse cenário histórico. Se ela não tivesse reencarnado não faria muita diferença. Pela própria força das coisas, segundo a expressão dos Espíritos, a escravidão negra, em 1888, já estava dando os seus últimos suspiros.
Costuma-se negar que haja qualquer tipo de influência racista no movimento espírita. No entanto, temos de
considerar que esse é um movimento onde a classe média predomina, trazendo consigo para o seu interior, todos os preconceitos típicos dessa camada social. Sem esquecer que na classe média, a quantidade de brancos é bem pequena.
A classe dirigente do movimento espirita brasileiro é, em sua grande maioria, de origem branca. Os negros são sempre minoria.
Quantos dirigentes de centros espíritas e sessões mediúnicas não têm negado a palavra a determinados Espíritos por se apresentarem como índios e pretos velhos, julgando-os inferiores, devido à ascendência étnica de sua encarnação pregressa? O preto velho é o que mais sofre. Muitas receitas, ervas e chás que essa entidade receita, quando se manifesta em terreiros de umbanda, só adquiriram o seu devido valor quando obtiveram a chancela da medicina oficial.
Comunicação no centro espírita, nem pensar, mesmo que seja sem os aparatos típicos a que ele está acostumado (charuto, marafo, roupa branca, vela, etc.).
A respeito da manifestação de índios e pretos velhos nas sessões mediúnicas, o filósofo espírita Herculano Pires tece interessante abordagem e analisa o espanto de algumas pessoas impregnadas, segundo ele, “de antigos preconceitos”. Herculano considera também a possibilidade de que tais fenômenos ocorrem no meio espírita como “uma ação programada no sentido de mostrar a iniqüidade das discriminações raciais.”28
O movimento espírita, como qualquer outro movimento, seja ele qual for, sofre as influências do meio cultural. Na nossa cultura, o sentimento racista se expressa, como vimos, das mais variadas formas. Ela está toda impregnada por este sentimento, que condiciona os valores e o comportamento dos grupos sociais. Não há no movimento espírita o racismo manifesto. Ele não é um movimento como o dos skinheads, por exemplo, que se engajam em uma cruzada segregacionista contra os negros, judeus e nordestinos. Todavia, as pessoas que o compõem se acham mergulhadas numa atmosfera tal que as conduz a comportamentos que poderíamos classificar como racistas. Apesar de serem ideologicamente contra qualquer manifestação racista, podem assumir, sem perceberem, comportamentos nitidamente discriminatórios em relação ao negro, até de modo inconsciente.
Pode-se citar o exemplo do conhecido orador carioca Raul Teixeira, de origem negra, chamado de divaldo preto, dadas as semelhanças de sua oratória e gesticulação com a do conferencista baiano Divaldo Pereira Franco. É claro, que na maioria das vezes, esse apelido é usado de modo aparentemente carinhoso, porém, já presenciamos situações em que era evidente o preconceito racial, pelo modo jocoso como ele foi usado.
Com o advento dos movimentos de consciência negra, religiões afro-brasileiras como a Umbanda, o Candomblé, o Carimbó, etc. passaram a ser mais valorizadas e encaradas como autênticas manifestações da religiosidade nacional, em que pese as influências do cristianismo e do Espiritismo sobre elas.
Afirma o jornalista Ubiratan Machado que “ao lado do kardecismo, desenvolveu-se um vigoroso espiritismo popular.
Em alguns momentos, a vitalidade deste chegou a parecer uma ameaça, porém, era apenas aparente. O caminho dos vários espiritismos, apesar dos atalhos de ligação e das influências recíprocas, sempre foram distintos.”29
Essa distinção, colocada por Ubiratan Machado quanto às relações entre o Espiritismo e as religiões sincréticas, entre os vários espiritismos, atualmente ganha outras nuances com o movimento negro, a ponto de se estabelecerem nítidas peculiaridades entre Umbanda e Espiritismo, por exemplo, em nível terminológico e semântico. Isso porque, para muitos líderes negros, ”Espiritismo é coisa de branco, é elitista, e foi fundado por um branco europeu”. E a Umbanda, uma religião de negros, uma religião de massas. Através dela o povo tem livre acesso à manifestação mediúnica, enquanto que o Espiritismo, pela sua própria natureza filosófico-científica, confere a essas manifestações um tipo de tratamento
diferenciado, metodológico e bem mais reservado.
De certo modo, o avanço do movimento negro tem uma contrapartida favorável à divulgação do Espiritismo. Na Bahia, por exemplo, onde os movimentos são bem organizados (vide Olodum, Afoxé Filhos de Gandhi, Timbalada, etc.), não existe a confusão que se faz, no sul do Brasil, entre Espiritismo e Umbanda, principalmente porque a religião afrobrasileira lá é bem desenvolvida e disseminada. Enquanto que no sul, além do preconceito, há muita desinformação acerca desse tema.
10. RACISMO ATÁVICO
A raça adâmica, constituída por Espíritos emigrados de outros planetas, tese primeiramente desenvolvida por Allan Kardec em A Gênese (cap. XI), ganhou desdobramentos através da obra do Espírito Emmanuel e do fundador da Aliança Espírita Evangélica, Edgard Armond.
Para Emmanuel, foi com esses Espíritos exilados de Capela, uma estrela da constelação de Cocheiro, “que
nasceram no orbe os ascendentes das raças brancas.”30 As raças negra e amarela, autóctones, já existiam antes da branca, teoria reafirmada por Edgard Armond em sua obra, Os Exilados de Capela, conforme informações colhidas do esoterismo mas, segundo ele, através da inspiração. Para Armond, que se fundamenta claramente na tradição esotérica, a quinta raça, a branca, seria “a última, no tempo, e a mais perfeita que apareceu na Terra, como fruto natural de um longo processo evolutivo”31. Estes seriam os aryas, “os homens da gloriosa quinta raça.”32
O fundador do Espiritismo não faz referência explícita ao surgimento da raça branca, a não ser na vinculação da raça adâmica à figura de Adão, daí esse nome. “Mais adiantada do que as que a tinham precedido neste planeta, a raça adâmica é, com efeito, a mais inteligente, a que impele ao progresso todas as outras. A Gênese no-la mostra, desde os seus primórdios, industriosa, apta às artes e às ciências, sem haver passado aqui pela infância espiritual, o que não se dá com as raças primitivas.”33 Kardec considera as raças negras, mongólicas e caucásicas, como de origem própria, nascidas, segundo ele, simultaneamente ou de modo sucessivo, em diversos pontos do planeta. Tese esta que corrobora as assertivas de O Livro dos Espíritos, como se vê no item IV, Diversidade das Raças Humanas (Livro Primeiro, cap. III - Criação) , que reproduzimos a seguir:
52. De onde vem as diferenças físicas e morais que distingüem as variedades de raças humanas na Terra?
_ Do clima, da vida e dos hábitos. Dá-se o mesmo que se daria com duas crianças da mesma mãe, que, educadas uma longe da outra e de maneira diferente, não se assemelhassem em nada quanto ao moral.
53. O homem apareceu em muitos pontos do globo?
_ Sim, e em diversas épocas, e é essa uma das causas da diversidade das raças; depois, o homem se dispersou pelos diferentes climas, e aliando-se os de uma raça aos de outras, formaram-se novos tipos.
53-a. Essas diferenças representam espécies distintas?
_ Certamente não, pois todos pertencem à mesma família. As variedades do mesmo fruto acaso não pertencem à mesma espécie?
54. Se a espécie humana não procede de um só tronco, não devem os homens deixar de considerar-se irmãos?
_ Todos os homens são irmãos em Deus, porque são animados pelo espírito e tendem para o mesmo alvo. Quereis sempre tomar as palavras ao pé da letra.
Admitindo-se essa teoria, é bem possível que, por causa das características intelecto-morais dos capelinos, bem superiores à dos Espíritos já reencarnados na Terra, tenha surgido uma espécie de racismo atávico, seria um racismo primordial, que viria talvez justificar a ideologia de superioridade racial para esses Espíritos, facilmente perceptível nas castas da Índia e na “vaidosa aristocracia espiritual” dos hebreus, conforme a expressão emmanuelina.
Todavia, sob um outro enfoque, poderíamos considerar essa teoria como corolário de uma certa dose de preconceito racial contra a raça negra e a amarela, cuja origem étnica seria supostamente inferior à branca, um biotipo mais evoluído(?) e adequado à encarnação de Espíritos mais desenvolvidos.
Edgard Armond e Emmanuel não explicam como surgiu, em termos genéticos e biofísicos, a raça branca. E em que sentido ela seria mais evoluída tipologicamente às demais raças. Por ora, faltam maiores informações para que esta teoria tenha a fundamentação desejada por muitos de seus adeptos mais extremistas, cuja formulação se aproxima inegavelmente da teoria arianista de Gobineau e do Eurocentrismo.
Isto posto, há outro aspecto que é interessante observar. Trata-se da mentalidade racista que certos povos e Espíritos carregam e trazem consigo ao reencarnarem, seja por orgulho ou auto-preservação.
As informações dos Espíritos contribuem para ilustrar a característica de certos povos, como os hebreus, os hindusarianos, os egípcios, etc. pois, através de estudos sociológicos e antropológicos, pôde-se notar, no seu sistema de valores, a presença de uma ideologia racista. Em nossos dias temos exemplos marcantes de nações racistas, em função das circunstâncias sociais e econômicas, e do nível moral dos Espíritos reencarnados. Mesmo com a queda do regime do apartheid, a Africa do Sul é um exemplo a ser lembrado. E isso ocorre também nos grupos sociais, como é o caso dos sionistas, de alguns esquadrões de extermínio, dos anti-semitas e tantos outros que se engajam numa luta sectária contra determinadas etnias ou grupos sociais. Os skinheads, exemplo já citado, é um dos grupos que mais explicitam a incorporação da ideologia racista. Tanto que esses punks anti-semitas incorporaram, em seu comportamento, toda a simbologia nazista e lêem assiduamente a obra My Kempf, escrita por Adolph Hitler, o célebre líder dos nazistas. Não estariam aí nazistas reencarnados?
11. CONCLUSÃO
O racismo é um desse sistemas que tendem a desaparecer, na medida em que a humanidade evolui e adquire novos conhecimentos, valores e virtudes que não fiquem somente no papel, ou no mero discurso de religiosos hipócritas e humanistas de segunda classe.
No Brasil, a discriminação racial já é caso de polícia. Sob o ponto de vista ético, o preconceito e a discriminação raciais se tornaram intoleráveis. A legislação prevê penalidades àqueles que desrespeitarem o direito de um cidadão, apenas por pertencer a determinada etnia, considerada “inferior”. Mesmo com o crescimento de grupos anti-semitas como os neonazistas, no nosso país e no mundo, não há como retroceder a antigos valores espúrios, que tanto mal trouxeram à humanidade.
Há muito ainda que se avançar nesse campo. Somente o próprio negro poderá conquistar seu espaço na cultura, em todas as áreas do conhecimento. Ninguém fará por ele aquilo que deve ser feito para o seu próprio bem estar. Do mesmo modo, as etnias da Europa Oriental, da antiga “cortina de ferro”, terão de se organizar se quiserem que sua voz seja ouvida e seus direitos garantidos, bem como as comunidades negras de toda a África, e de todos os grupos étnicos discriminados em qualquer parte do planeta.
O racismo, talvez por ter sido considerado como uma questão menor pelo movimento espírita, é um tema pouco abordado. A bibliografia é escassa. Na década de 40, o filósofo espírita David Grossvater, da Venezuela, de ascendência judaica, em alguns momentos de sua obra, ainda desconhecida no Brasil, chegou a abordar o tema. Os pensadores espíritas brasileiros Herculano Pires e Deolindo Amorim, de “en passant”, também se referiram ao racismo, mas sem se debruçar com maior profundidade.
A questão das minorias, a questão da mulher, dos homossexuais, das etnias discriminadas, dentre outras, não podem ser desprezadas. Isso significa inserir o Espiritismo na modernidade e assim, enfrentar toda a problemática existencial de nosso tempo, sem o receio de reavaliar _ segundo uma re-leitura crítica, contextualizada e qualitativa _ determinadas posições de Allan Kardec e dos Espíritos que participaram da estruturação da filosofia espírita.
Se as novas gerações de espíritas não realizarem essa tarefa, o movimento espírita corre o risco de ficar como aquele sujeito da música “A Banda”, de Chico Buarque, que “estava à-toa na vida” e foi à janela “pra ver a banda passar”.
12. NOTAS
1. SANTOS, Joel Rufino dos. O que é Racismo, p. 65.
2. VÁRIOS AUTORES, São Paulo 1975: Crescimento e Pobreza,
p. 104.
3. KARDEC, Allan, O Livro dos Espíritos, q. 799.
4. Ibid. q. 317.
5. Ibid. q. 806.
6. Ibid. q. 803, o grifo é meu.
7. Ibid. q. 829.
8. Ibid. q. 831.
9. Ibid.
10. Ibid. q. 52.
11. Ibid. q. 54.
12. Ibid. q. 132.
13. Ibid. q. 185.
14. Ibid.
15. FERNANDES, Florestan, Revista Humanidades.
16. KARDEC, Allan, Obras Póstumas, p. 130.
17. Ibid., p. 130.
18. CAMPOS, Espírito Humberto de, Brasil Coração do Mundo
Pátria do Evangelho, p. 51.
19. Ibid.
20. Ibid.
21. Ibid., p. 52.
22. Ibid.
23. Ibid., p. 68.
24. Ibid.
25. Ibid.
26. Ibid., p. 55.
27. Ibid., p. 202.
28. PIRES, Herculano, Ciência Espírita e suas Implicações Terapêuticas, p. 100.
29. MACHADO, Ubiratan, Os Intelectuais e o Espiritismo, p. 230.
30. EMMANUEL, Espírito, A Caminho da Luz, p. 37.
31. ARMOND, Edgard, Os Exilados de Capela, p. 81.
32. Ibid., p. 82.
33. KARDEC, Allan, A Gênese, p. 226/27.
13. BIBLIOGRAFIA
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Eugenio Lara, arquiteto e design gráfico, é redator e produtor gráfico do jornal de cultura espírita Abertura, membro fundador do Centro de Pesquisa e Documentação Espírita (CPDoc) e do Instituto Cultural Kardecista de Santos.
Trabalho concluído em 1994, apresentado no Centro de Pesquisa e Documentação Espírita (CPDoc) e no II Simpósio Brasileiro do Pensamento Espírita, de 1991.

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