Eugenio
Lara
“Nadie
nace como quiere. Es una cuestión honda la del destino humano. Este
mismo orgulloso, esquivo y
puritano,
bien pudiera haber nacido en Africa, y el desdeñado hubiera nacido
hecho un rubio nórdico. La
situación
hubiera sido inversa ... Que piensen en ello aquellos que se sienten
“Superiores” por tener alba la
piel.
La superficie clara o oscura no indica ninguna superioridad o
inferioridad.”
David
Grossvater
1.
INTRODUÇÃO
2.
O RACISMO
3.
AS RAÍZES DO RACISMO BRASILEIRO
4.
“DEMOCRACIA RACIAL” E MISCIGENAÇÃO
5.
AXÉ E NEGRITUDE
6.
CONDICIONAMENTO PSICO-SOCIAL
7.
O ESPIRITISMO E O RACISMO
8.
KARDEC ERA RACISTA?
9.
OS ESPÍRITAS E O RACISMO
10.
RACISMO ATÁVICO
11.
CONCLUSÃO
12.
NOTAS
- BIBLIOGRAFIA
1.
INTRODUÇÃO
O
presente trabalho é uma modesta abordagem do racismo e suas várias
implicações, sob a ótica da filosofia espírita. São reflexões
sobre a presença desse sistema sectário de pensamento na sociedade,
e que tantos prejuízos tem trazido para a paz e a fraternidade entre
os homens.
O
que é o racismo? Como se dá sua presença de modo tão marcante na
sociedade brasileira e no próprio movimento espírita? São algumas
questões, dentre outras, que esse trabalho procura abordar, com a
intenção de atingir os seguintes objetivos:
1.
Abordar as raízes históricas do racismo e seus efeitos no
comportamento das pessoas, segundo
condicionamentos
psicossociais introjetados pela nossa cultura, amplamente
influenciada por pré-conceitos de origem racista; a questão do
racismo hoje e do movimento negro, procurando identificar algumas de
suas influências no movimento espírita.
2.
Tecer algumas críticas a determinadas conceituações e colocações
de Espíritos e espíritas, ainda marcadas pelo religiosismo e a
visão idealista do processo histórico, que escamoteia o verdadeiro
sentido do papel do negro na história e na sociedade.
3.
Analisar a posição de Allan Kardec em relação ao negro, sob o
ponto de vista ético, estético e espiritual. Até que ponto o
fundador do Espiritismo foi preconceituoso em relação a essa etnia?
Teria ele sido racista em suas reflexões sobre a raça negra?
4.
Expor a visão espírita:
a.
Do homem como um cidadão do universo que é, transcendente à etnia,
religião, nacionalidade, etc.
b.
Da reencarnação, cuja concepção espírita contribui para a
destruição dos preconceitos de casta e de cor.
2.
O RACISMO
O
racismo, segundo a acepção do “Novo Dicionário Aurélio” é “a
doutrina que sustenta a superioridade de certas raças”. Enquanto
sistema de pensamento, o racismo teve as suas primeiras teorizações
no século passado, na França.
O
Conde de Gobineau foi o principal teórico das teorias racistas. Sua
obra, “Ensaio Sobre a Desigualdade das Raças Humanas” (1855),
lançou as bases da teoria arianista, que considera a raça branca
como a única pura e superior às demais, tomada como fundamento
filosófico pelos nazistas, adeptos do pan-germanismo.
O
racismo caracteriza-se como um sistema segregacionista por natureza,
uma ideologia que prega a supremacia de um povo, de uma raça, ou
mesmo de uma cultura sobre outras, expressando-se de diversas
maneiras: em nível cultural, religioso, biológico. Na concepção
de valores, e em nível institucional, legalizado.
É
um fenômeno de caráter universal. Os judeus, na Antigüidade,
comportavam-se de modo racista ao se
considerarem
como o povo eleito pelo Deus-Jeová e ao discriminarem os outros
povos, chamados por eles de gentios.
Para
o romano, todo aquele que não participasse de sua cultura era
chamado pejorativamente de bárbaro. Os espanhóis, que trucidaram os
povos pré-colombianos, consideravam-nos como seres inferiores, o
mesmo ocorrendo no Brasil com os bandeirantes portugueses em relação
aos indígenas brasileiros.
Apesar
de ser um sistema que não se limita somente à discriminação do
negro, o racismo é hoje quase sinônimo de perseguição à raça
negra, bastando se reportar ao extinto regime racista do apartheid,
na África do Sul e o racismo brasileiro, marcante na concepção de
valores e escamoteado pelo mito da “democracia racial”.
No
Brasil, passados mais de 100 anos da promulgação da Lei Áurea, em
13 de maio de 1888, que libertou
(legalmente)
os negros da escravidão, há muito ainda por ser conquistado a fim
de que o negro tenha, de fato, sua dignidade garantida e respeitada.
3.
AS RAÍZES DO RACISMO BRASILEIRO
As
raízes do racismo brasileiro, que se caracteriza principalmente pela
discriminação do branco sobre o negro, encontram-se no Brasil
Colonial e se acham vinculados historicamente à escravatura.
A
escravidão negra foi a solução do capitalismo comercial para a
exploração das colônias, por tratar-se de mão-deobra barata,
tornando-se o Brasil e diversas outras colônias, numa das molas
mestras de todo o sistema econômico colonial.
Na
medida em que o capitalismo europeu foi superando sua fase comercial
e monopolista, para se constituir no capitalismo industrial, em
meados do século passado, o antigo sistema colonial, mantido por
Portugal e Espanha, duas superpotências em franco período de
decadência, torna-se um grande obstáculo à livre circulação de
mercadorias, agora industrializadas. A manufatura tende a ceder seu
lugar à indústria e o comerciante, ao industrial.
A
lógica do capital conduz à expansão de mercados. A mão-de-obra
escrava, por ser barata, reduzia enormemente os custos indiretos da
produção brasileira, cujos produtos, no mercado internacional, eram
um dos mais baratos, concorrendo com os produtos de países europeus
colonizadores. Era preciso acabar com a escravidão para que se
abrissem novas frentes de mercado, de modo que os produtos
brasileiros deixassem de concorrer com os europeus.
A
Inglaterra, primeiro país a se industrializar, passa a pressionar
Portugal para que elimine a escravidão no Brasil. Em conseqüência
da invasão das tropas de Napoleão Bonaparte a Portugal, D. João VI
e a família real portuguesa transferem-se para o Brasil em 1808. A
Inglaterra dá todo o apoio a Portugal em troca da abertura dos
portos e da extinção do tráfico negreiro.
Com
a abertura dos portos, passam a surgir no Brasil diversas unidades
produtivas. A Inglaterra e outros países começam a montar no Brasil
as suas primeiras indústrias.
Diversos
fatores contribuíram para a extinção da escravidão, notadamente
os econômicos. Mas para extingui-los, foram necessários longos anos
de luta, já que teve ardorosos defensores em amplos setores da
camada social. Além de interesses econômicos, representados pelos
senhores de engenho e posteriormente, pelos barões de café, havia
também interesses de caráter psicológico. Para a classe dominante,
ter um escravo era sinônimo de “status”, de prosperidade. A
Igreja, dominante na época, pregava a idéia absurda de que a
escravidão era algo “natural” porque Deus assim o permitia. Haja
visto que a Igreja, ao lado dos traficantes, muito lucrou com a
escravidão. Em Portugal, por exemplo, a Ordem de Cristo tinha
participação ativa na partilha dos lucros do comércio de escravos.
O tráfico negreiro era, sem dúvida, uma interessante fonte de
enriquecimento.
Em
1850 é aprovada a Lei Euzébio de Queiróz, extinguindo o tráfico
negreiro, o primeiro golpe certeiro no escravismo. O tráfico ainda
persistiu durante muitos anos, à revelia da legislação e de todas
as represálias da Inglaterra, que fiscalizava, perseguia e até
afundava os navios negreiros. Com a aprovação dessa lei, a abolição
da escravidão seria apenas uma questão de tempo.
Com
a extinção do tráfico de escravos, a classe dos traficantes passa
a investir seu capital acumulado em outros setores da economia,
aplicando-os na abertura de empresas comerciais e financeiras. A
partir da década de 50, inúmeras indústrias surgem e a Inglaterra
passa a investir capital no Brasil.
A
mão-de-obra escrava tendia, portanto, a se tornar escassa, criando
um problema crônico para os senhores de engenho e para os barões de
café, a nova aristocracia que surge a partir da década de 70, com a
expansão da lavoura cafeeira. Após a decadência da cana-de-açúcar,
do algodão e do tabaco, este último utilizado como moeda no
comércio negreiro, o café vem se caracterizar como o grande produto
de exportação e a última das grandes monoculturas.
À
medida que o senso de valores da sociedade colonial evolui, a
escravidão passa a ser considerada uma agressão à dignidade
humana, perdendo assim sua sustentação moral. Além de todas as
pressões internacionais, no Brasil o movimento abolicionista será o
grande mediador dessa ânsia de transformação, de indignação
generalizada dos setores mais politizados da sociedade.
Desde
1822, com a proclamação da Independência, o movimento
abolicionista vinha conquistando um espaço de influenciação cada
vez maior junto à opinião pública. De início, esse movimento se
caracteriza pela reunião de intelectuais e profissionais liberais
comprometidos com ideais humanitários. Mas, com o passar do tempo,
irá assumir características políticas e até revolucionárias. Se
de início agia na legalidade, a partir da década de 80 passa a
praticar o que hoje chamaríamos de desobediência civil, agindo na
ilegalidade, em espaços alternativos de atuação, praticando uma
espécie de luta “underground”, incentivando fugas de escravos,
financiando revoltas e apoiando a formação de quilombos.
Há
de se considerar, contudo, em todo esse processo de emancipação,
que o negro não foi um simples objeto. Ele tem de ser considerado
como sujeito de sua própria história.
Com
as recentes pesquisas historiográficas acerca do papel do negro nas
rebeliões e na formação de quilombos, torna-se hoje insustentável
a tese de que ele tivesse tipo um papel passivo e subalterno no
processo de abolição da escravatura.
O
quilombo, agrupamento alternativo que reunia escravos fugidos,
índios, mestiços e até criminosos, foi o símbolo máximo da
resistência e da revolta negra no Brasil colonial. O mais importante
deles, o Quilombo de Palmares, foi uma grande confederação de
quilombos, e chegou a reunir cerca de 20.000 quilombolas. Resistiu ao
poder durante mais de 60 anos (de 1630 a 1695), sendo finalmente
massacrado cruelmente por Domingos Jorge Velho e suas tropas,
bandeirante responsável pelo assassinato de milhares de indígenas,
e ainda considerado pela historia oficial como um dos “grandes”
vultos da nossa história.
Como
afirmamos no início, uma série de fatores contribuíram para a
abolição da escravatura. Todavia, o golpe de misericórdia foi a
imigração européia: solução encontrada pelos barões de café
para suprir a escassez de mão-de-obra. Com o avanço das forças
produtivas e das relações de produção, a velha ordem colonial não
atendia mais aos interesses do capital, que passa a exigir uma
mão-de-obra mais qualificada. Mesmo a importação de escravos do
norte do país não conseguirá abastecer de mão-de-obra as lavouras
cafeeiras e as novas unidades produtivas. A mão-de-obra escrava,
além de ser cara e insuficiente, não atendia às necessidades das
novas relações de produção, redundando o seu uso em um atraso
econômico nas manufaturas existentes.
O
imigrante europeu constituiu-se na grande solução desse problema de
mão-de-obra. E as condições climáticas do sul do país favoreciam
essa nova corrente migratória. O escravo torna-se obsoleto e a forma
de trabalho assalariado passa a ser mais vantajosa para o patrão.
A
partir de 1870, o Brasil será o único país do Ocidente a manter o
regime de escravidão, significando com isso, um atraso econômico
que ainda não foi superado. As pressões internacionais e nacionais
se intensificam. O movimento abolicionista ganha mais força. Em 1871
é aprovada a Lei do Ventre-Livre. Hábil manobra do poder e que
resultou num certo arrefecimento do abolicionismo, que ressurge com
todo seu vigor a partir da década de 80 em todo o país. Em 1883, o
movimento é unificado pela Confederação Abolicionista.
A
enorme capacidade de persuasão dos abolicionistas, seu ativismo e
idealismo, formam o grande catalisador da derrubada da ordem
escravista. José do Patrocínio, o “Tigre da Abolição”,
Joaquim Nabuco, Luís Gama, dentre outros, foram abolicionistas
brilhantes, grandes lideranças urbanas, cuja atuação contribuiu
significativamente para a abolição da escravidão. No plano da
literatura, a obra poética de Castro Alves se constituirá numa
grande contribuição à causa, quase do mesmo modo que a obra
literária do escritor norte-americano Harriet Breecher Stow, “A
Cabana do Pai Tomás” (1852).
Os
movimentos de evasão, de fuga dos escravos se intensificam. Em 1884,
no Ceará, os escravos são libertados. Falta apenas formalizar o fim
da escravidão. Não há mais sustentação alguma para a sua
existência.
Em
13 de maio de 1888, a Regente Princesa Isabel, que substituía seu
pai, Dom Pedro II, afastado do trono por motivos de saúde, sanciona
a lei nº 3.353, a Lei Áurea, composta de apenas dois artigos:
“Artigo
1º _ É declarada extinta a escravidão no Brasil. Artigo 2º _
Revogam-se as disposições em contrário”. E com isso liberta
quase um milhão de escravos em todo o País. Indubitavelmente, a
abolição dos escravos foi o resultado lento e gradual de mudanças
estruturais na economia internacional e nacional, oriundas da
transição do capitalismo monopolista para o industrial.
Durante
muito tempo a escravidão foi analisada sob um ponto de vista
ingênuo. Sua abolição, fruto do idealismo dos abolicionistas e da
misericórdia da Princesa Isabel, a “Redentora”. Essa versão
ideológica da histórica ainda é ensinada nas escolas, segundo uma
interpretação idealista do processo histórico, que considera os
fatos históricos como entidades independentes, autônomas e os
“grandes vultos” como sujeitos determinantes de toda a realidade
histórica, sem considerar toda a dinâmica de seu processo de
transformação.
Se
de um lado a Lei Áurea libertou legalmente os negros-escravos, de
outro, eles foram jogados pela política imigrantista e racista num
mercado de trabalho hostil e incapaz de absorvê-los como
mão-de-obra, em função de sua desqualificação e despreparo para
concorrer com o imigrante europeu. Como mão-de-obra desqualificada,
ao negro restava os trabalhos mais insalubres. Daí as causas de um
certo “parasitismo” em comparação com a mulher negra, que
conseguia mais facilmente emprego como lavadeira, empregada,
faxineira e outros serviços domésticos.
Além
das barreiras econômicas, havia para o negro recém-saído da
escravidão, enormes barreiras ideológicas criadas pela ideologia
racista, quase que intransponíveis. Parafraseando Joel Rufino dos
Santos, os negros de hoje “são ‘despossuídos históricos’,
descendem de pessoas que nunca tiveram nada, nem sequer a posse do
seu próprio corpo”.1
4.
“DEMOCRACIA RACIAL” E MISCIGENAÇÃO
“Preto
só come carne quando morde a língua”, “o preto, quando não
apronta na entrada, apronta na saída”, “o preto é bem dotado”,
“a negra é boa prá transar mas não serve para casar”, “é um
negro de alma branca”, “serviço mal feito é serviço de preto”,
“o preto é indolente, preguiçoso, não gosta de trabalhar”,
neguinho, pretinho, tição, negão, crioulo”, etc. e etc. Frases,
piadas, expressões e pechas como essas, são por demais conhecidas.
Expressam bem o quanto o brasileiro é preconceituoso.
O
racismo brasileiro, ainda escamoteado e acobertado pelo mito da
“democracia racial”, é um estigma, uma nódoa presente na mente
do povo brasileiro e que faz parte do cotidiano de todos nós.
Como
vimos, as raízes do racismo contra o negro, no Brasil, também têm
sua origem no período da escravidão. Mas podemos encontrar o
racismo em teorias, em formulações filosóficas que, pelo menos em
nosso País, fundamentaram durante muito tempo o preconceito racial e
a suposta superioridade do branco.
É
o caso da teoria arianista da miscigenação, que considerava a
inferioridade econômica e cultural do Brasil como conseqüência da
miscigenação, da mistura entre as raças.
Raimundo
Nina Rodrigues, ensaísta, etnógrafo e sociólogo, um dos primeiros
a estudar o comportamento dos negros brasileiros, e Sílvio Romero,
ensaísta e historiador, foram, no começo do século, os principais
elaboradores da teoria arianista, que considera a raça branca como
sendo superior às demais.
A
partir da década de 30, com o lançamento da célebre obra “Casa
Grande e Senzala” (1933), o sociólogo Gilberto Freyre passa a
questionar a tese arianista e propõe a tese da “democracia racial
brasileira”. A miscigenação, ao invés de ter sido um mal, foi um
bem, segundo o sociólogo, proporcionando o convívio democrático
entre as raças, sem conflitos, sem discriminação. Tese ainda
predominante nos meios culturais e freqüentemente disseminada nos
meios de comunicação. Será a partir de estudos elaborados por
Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, dentre outros, que o
mito da “democracia racial” vai ser revisto, colocando a situação
do negro no Brasil sob uma ótica mais crítica, sem romantismos,
tentando esmiuçar as contradições do contexto de discriminação
racial em que o negro se acha inserido, desde a escravidão.
5.
AXÉ E NEGRITUDE
Após
a década de 70, principalmente em seu final, o movimento negro no
Brasil se dinamiza. A exemplo do “black power” norte-americano no
final da década de 60, o movimento negro brasileiro passa a
valorizar as raízes de sua própria cultura. É a idéia de
“negritude”, uma espécie de postura quase que estética em seu
bojo, com relação à cultura negra. É o negro se assumindo como
ser, assumindo sua aparência, etnia, suas verdadeiras raízes, sua
cultura. Escolas de capoeira, afoxés, penteados e roupas
características da cultura negra, constituem-se num movimento que
culminou com a comemoração dos 100 anos de libertação dos
escravos.
Reivindica-se
o valor do negro na história, a comemoração da libertação dos
escravos no dia da morte de Ganga Zumbi, o grande líder negro de
Palmares, em 20 de novembro, que é considerado pelos movimentos
negros de cunho mais progressista, como o Dia da Consciência Negra.
Grandes
avanços foram conquistados pelos movimento negro, desde a época de
Getúlio Vargas, quando surgiu de modo mais destacado, significando
um maior nível de consciência da exploração do negro, de seus
direitos. Há, sem dúvida, em função desse maior nível de
politização e conscientização, uma evidente divisão no movimento
negro. Os movimentos atrelados ao poder ainda se mantêm fiéis às
tradições comemorativas do 13 de maio, enquanto outros setores
desse mesmo movimento, com maior nível de consciência, questionam a
forma como tem sido comemorada a “libertação” dos negros. No
dia 13 de maio de 1988, na capital, em São Paulo a comemoração da
libertação dos escravos se dividiu em dois grupos distintos. De um
lado, os negros do “13 de maio”, e de outro, os negros do “20
de novembro”, evidenciando o grau de divisão existente, sem
significar, contudo, um retrocesso.
Em
todo o mundo, não dá mais para suportar regimes racistas como foi o
do “apartheid”, que hoje é apenas uma referência vergonhosa na
história da humanidade. Para eliminar esse câncer, diversos
movimentos se engajaram em defesa dos direitos humanos. Campanhas de
solidariedade, concertos de rock contra o “apartheid” foram
realizados, em apoio à luta do ex-preso político Nelson Mandela, o
grande ativista negro sul-africano, guindado à condição de líder
de sua nação, com a vitória nas eleições multirraciais.
Comemorar
o “13 de maio” ou o “20 de novembro” é denunciar o grau de
exploração do negro em nossa sociedade, é resgatar o seu valor na
cultura. Axé! cantam os negros em todos os meios de comunicação.
6.
CONDICIONAMENTO PSICO-SOCIAL
O
racismo brasileiro é também camuflado, escamoteado pela ideologia
dominante de que todos “são iguais”, com “iguais”
oportunidades e direitos, e portanto, se há negros que não chegam
“lá”, não ascendem na escala social, é porque são preguiçosos
e não gostam de trabalhar. O próprio negro, se fracassa, é
considerado culpado apenas pelo fato de ser de pele escura, e por
isso, “inferior” ao branco. Para demonstrar essa falácia da
sociedade racista, tomam-se como exemplo de comprovação de sua
ideologia,
indivíduos
que conseguiram “subir na vida”. O caso de Pelé é o mais
evidente. Ele representa hoje um dos símbolos máximos da
“inexistência” de preconceito e discriminação raciais, “um
negro de alma branca”. Mesmo aqueles que negam o rótulo de
racista, em função de uma espécie de condicionamento psico-social,
cultural, assumem comportamentos racistas. É o branco que se julga
superior. É o negro que, introjetando a discriminação racial, se
acha inferior e incapaz.
Os
fatores sócio-culturais influenciam o comportamento e produzem,
indubitavelmente, condicionamentos psicológicos, complexos em seu
dimensionamento. Devido a esses condicionamentos, o negro se nega a
si mesmo.
Para
muitos, é o caso do cantor negro, ou ex-negro, Michael Jackson, que
alisou o cabelo, fez plástica para mudar seus traços fisionômicos
e embranqueceu, segundo ele, em função de uma doença da pele. Quem
compara esse cantor norte-americano dos tempos do conjunto Jackson
Five com o de hoje, vê uma diferença brutal. Antes era negro,
atualmente é quase branco.
Nos
Estados Unidos, como no Brasil, negro só é mesmo famoso através da
música ou do esporte. Como cantor de rock ou de samba, jogador de
futebol, basquete ou lutador de boxe. Vide o exemplo do lutador
brasileiro Maguila, que se tornou famoso da noite para o dia.
O
racismo brasileiro é ainda escamoteado por diversos símbolos
criados pelo mito da “democracia racial”. A mulata, o samba, o
carnaval, a feijoada, o futebol, orgulhos de nossa cultura,
apresentados como uma espécie de ícone, são componentes simbólicos
de uma cultura hipócrita que não se assume como racista. No
entanto, o modelo brasileiro de beleza não é a mulata. Basta ver a
quantidade de mulatas que ganhou o concurso de miss Brasil. É quase
zero. O modelo que nos é passado é o da animadora Xuxa, a
apresentadora e escritora Bruna Lombardi, a atriz e ex-miss Brasil,
Vera Ficher, todas brancas. Na música, mesmo com a moda do pagode,
do rap, do funk e do reggae, o que mais se ouve é a música enlatada
norte-americana, da pior qualidade, e feita em sua grande maioria por
brancos. A contribuição do negro para a cultura, de um modo geral,
ainda é considerada secundária, restringindo-se à música, à
culinária, nada mais.
Em
1951, com a aprovação da Lei Afonso Arinos, a discriminação
racial foi colocada na ilegalidade, sem direito a fiança. Todavia,
apesar dessa lei, a violência contra os negros prossegue. A
distância entre “a casa grande e a senzala” ainda não foi
superada. Basta ver no mercado de trabalho, a discriminação que
existe, onde os não negros conseguem os melhores postos. Em diversas
áreas profissionais, o trabalhador negro possui, amiúde, um salário
inferior ao do branco. E quem não tiver boa aparência, não
consegue a vaga. Ou seja, as exigências curriculares mostram de modo
velado a discriminação racial. É muito alta a quantidade de negros
que são presos e condenados. Já os “crimes do colarinho branco”,
são quase impossíveis de serem reprimidos.
Foi
somente a partir da década de 40 que o negro passou a ser
incorporado de modo mais efetivo a um novo mercado de trabalho, isso
após o intenso processo de industrialização iniciado durante a
ditadura Vargas. As oportunidades apenas aumentam, já que
anteriormente, em função de uma política racista, de apoio e
proteção aos imigrantes europeus, havia um fosso entre os brancos
trabalhadores e os negros ex-escravos. Todavia, o negro é ainda o
que se encontra mais sujeito ao desemprego. não em função de sua
suposta incapacidade ou inferioridade, mas por condicionantes
sócio-econômicos, oriundos do passado escravocrata. Ainda hoje, no
mercado de trabalho da Grande São Paulo, é muito comum a associação
dos negros e mulatos aos nordestinos, chamados pejorativamente de
“cabecinhas” ou “baianos”2.
De
todos os lados o negro é vítima do preconceito e da discriminação
raciais, constituindo-se no caso citado, em uma dupla discriminação,
ao negro e ao nordestino. E nem seria necessário de se fazer uma
pesquisa mais criteriosa, a fim de se constatar que na burguesia,
quase inexistem negros. No máximo, eles conseguem se situar na
camada média da sociedade, daí para baixo. Obviamente as exceções
existem, como no caso de Pelé, Maguila, dos músicos Gilberto Gil e
Jorge Ben Jor, etc. mas cuja ascensão social, como vimos, está
associada, quase sempre, diretamente ao esporte ou à música.
7.
O ESPIRITISMO E O RACISMO
A
destruição dos preconceitos de casta e de cor é um dos objetivos
do Espiritismo. Isso é bem claro na kardequiana.
O
progresso da civilização passa, necessariamente, pela abolição de
toda e qualquer forma de preconceito. O Espiritismo, “destruindo os
preconceitos de seita, de casta e de cor, ensina aos homens a grande
solidariedade que os deve unir como irmãos.”3
Nesse
aspecto, do progresso da Humanidade, o Espiritismo pode ter uma
influência muito importante, devido à ampla visão que oferece, do
homem, da sociedade e do cosmos. Antes de se achar sujeito a
determinada cultura, nacionalidade, etnia ou religião, o homem é um
ser cósmico, um cidadão do universo. Esse princípio, se bem
compreendido, faz ver a realidade sob uma outra ótica, sem os
preconceitos generalizados que se encontram ainda arraigados na alma
humana. Para os Espíritos elevados, “a pátria é o Universo; na
Terra, é aquela em que possuem maior número de pessoas
simpáticas.”4
Pelo
entendimento dos mecanismos que regem a lei da reencarnação, a
superioridade que certos grupos étnicos atribuem a si torna-se
insustentável e até ridícula. Esse tipo de postura
discriminatória, existente nas relações entre os diferentes grupos
étnicos, ao lado de diversos fatores de ordem política e econômica,
tem gerado as desigualdades sociais no nosso planeta, constituindo-se
num enorme obstáculo para a construção de uma sociedade mais
fraterna e igualitária. Afirmaram os Espíritos a Allan Kardec que
essas desigualdades um dia desaparecerão, “juntamente com a
predominância do orgulho e do egoísmo, restando tão somente a
desigualdade de mérito. Chegará um dia em que os membros da grande
família dos filhos de Deus não mais se olharão como de sangue
mais ou menos puro, pois somente o Espírito é mais puro ou
menos puro, e isso não depende da posição social.”5 Segundo
Kardec, todos os homens “são submetidos às mesmas leis naturais,
todos nascem com a mesma fragilidade, estão sujeitos às mesmas
dores e o corpo do rico se destrói como o do pobre. Deus não
concedeu, portanto, superioridade natural a nenhum homem, nem pelo
nascimento, nem pela morte, todos são iguais diante d’Ele.”6
A
mentalidade racista produziu, na história da humanidade, situações
extremadas de discriminação racial, como a escravidão dos negros
africanos, considerada pelo Espiritismo como sendo contrária à
Natureza, “pois assemelha o homem ao bruto e o degrada moral e
fisicamente.”7 “Os homens têm considerado, há muito, certas
raças humanas como animais domesticáveis, munidos de braços e de
mãos, e se julgam no direito de vender os seus membros como bestas
de carga. Consideram-se de sangue mais puro. Insensatos, que não
enxergam além da matéria! Não é o sangue que deve ser mais ou
menos puro, mas o Espírito.”8
A
idéia de que o homem possa encarnar como branco, negro, mulato ou
índio, estabelece uma ruptura com o preconceito e a discriminação
raciais. Tanto que até hoje, na Inglaterra, muitos adeptos do
Neo-espiritualismo rejeitam a tese da reencarnação, por não
admitirem a possibilidade de terem tido encarnações em posições
inferiores quanto à raça e à condição social. Afinal, como se
sentiria um indivíduo de mentalidade racista encarnado em uma raça
que considere inferior? Nesse sentido, as questões que reproduzimos
abaixo são bem elucidativas.
205.
Segundo certas pessoas, a doutrina da reencarnação parece destruir
os laços de família, fazendo-os remontar às existências
anteriores.
_
Ela os amplia, em vez de destruí-los. Baseando-se o parentesco em
afeições anteriores, os laços que unem os membros de uma mesma
família são menos precários. A reencarnação amplia os deveres de
fraternidade, pois no vosso vizinho ou no vosso criado pode
encontrar-se um Espírito que foi de vosso sangue.
205-a.
Ela diminui, entretanto, a importância que alguns atribuem à
filiação, porque se pode ter tido como pai um Espírito que
pertencia a uma outra raça, ou que tivesse vivido em condição bem
diversa?
_
É verdade, mas essa importância se baseia no orgulho. O que a
maioria honra nos antepassados são os títulos, a classe, a fortuna.
Este coraria de haver tido como avô um sapateiro honesto, e se
vangloria de descender de um gentilhomem debochado. Mas digam ou
façam o que quiserem, não impedirão que as coisas sejam como são,
porque Deus não regulou as leis da Natureza pela vossa vaidade.”9
A
diversidade das raças, condição natural do aparecimento do homem
na Terra, resultado “do clima, da vida e dos hábitos”10, não
significa, de modo algum, que os homens estabeleçam juízos de valor
discriminatório, quanto à origem étnica de determinados grupos
sociais. Para o Espiritismo, todos os homens “são irmãos em Deus,
porque são animados pelo mesmo espírito e tendem para o mesmo
alvo.”11
O
preconceito e a discriminação raciais constituem também o grande
conjunto de circunstâncias existenciais a que os Espíritos
reencarnantes estão sujeitos. Um Espírito, reencarnado num corpo de
origem negra, estará sujeito à discriminação e isso lhe será uma
condição, uma contigência evolutiva a ser superada. “Para uns
pode ser uma expiação, para outros uma missão”12, uma nova
oportunidade de aprendizado, já que as experiências que ele
experimentará como negro, serão bem diferentes das de outro que
reencarne como branco, em função das desigualdades sociais.
Essas
desigualdades são um mal que precisa ser eliminado. Todavia, devido
à Lei de Progresso, também são um bem. Ou seja, são utilizadas
sabiamente pela Natureza, no aprimoramento intelecto-moral dos
Espíritos. Portanto, dentro da concepção espírita, não se
sustentam visões fatalistas, “cármicas”, que visualizem
Espíritos reencarnados em corpos de origem negra como culpados,
algozes do passado. A culpa, se houver, será apenas uma condição
psicológica, imposta pela própria consciência do Espírito
reencarnante, sem relação alguma com arbitrariedades supostamente
delegadas pelo “plano espiritual superior”.
São
essas concepções fatalistas, baseadas na culpa e no pecado, que
levam muitos espíritas e Espíritos a considerarem os escravos
negros como inquisidores, cruzados e senhores feudais reencarnados,
ou judeus
massacrados
pelos nazistas como hebreus reencarnados. Essas concepções têm
mais a ver com a formação religiosa de certos espíritas e
Espíritos do que com a visão evolucionista do Espiritismo. Trata-se
de uma concepção distorcida da reencarnação que, ao invés de
servir como um poderoso instrumento de compreensão do processo
evolutivo dos seres e das coisas, funciona como fator de alienação,
de ocultamento da realidade.
Com
que finalidade um senhor de engenho, por exemplo, tem de reencarnar
como negro e sofrer as mesmas dores que fez os escravos sob o seu
poder sofrerem? Seria assim o mecanismo da reencarnação?
Os
seres humanos não são coisas, objetos que, sujeitos a uma lei de
causa e efeito independente de sua realidade intelecto-moral, tenham
que se submeter a reações esquemáticas, cartesianas. Há uma
lógica no processo palingenésico, mas ela está longe de ser uma
lógica mecanicista. Ao contrário, a concepção espírita da
palingenesia nos leva a pensar o processo evolutivo como um continuum
caótico, dialético, contraditório. Isso não significa que
inexista uma ordem, necessária e inexorável, ainda desconhecida em
sua estrutura básica e no seu detalhamento.
Aquele
senhor de engenho, pela sua formação, pela sua inteligência, pode
contribuir muito mais para si e para outros, se concretizar o seu
arrependimento na reformulação do próprio processo evolutivo. Ele
poderá reencarnar, por exemplo, como um negro, que sentirá a ânsia,
a paixão de lutar pela libertação de sua raça, de modo que muitos
benefícios poderá trazer para a eliminação do racismo. Se tiver
vocação pela política, poderá lutar de modo perseverante a favor
da abolição de qualquer resquício, nas leis e na cultura, de
preconceitos contra a raça negra, beneficiando assim,
indiretamente,
aqueles que ele próprio prejudicou em outras existências. E assim
por diante.
As
variáveis são muitas, principalmente por que estamos lidando com
seres, cuja liberdade volitiva os afasta de qualquer esquema cármico,
a não ser que eles mesmos prefiram seguir, por algum processo de
culpa ainda muito pouco esclarecido, um caminho onde possam vir a
expiar a mesma dor que em outros eles provocaram, a fim de sentir o
mal “na mesma pele”. É também um caminho possível, mas que não
se constitui em lei, em regra, em um princípio que sirva a todos os
seres. Foi o caminho escolhido por determinado Espírito, apenas
isso.
Uma
mesma causa pode gerar uma infinidade de efeitos. Isso em relação a
objetos. Já em relação às pessoas, aí a situação se torna
ainda mais complexa. A dificuldade de se equacionar, no caso em
questão, o fenômeno palingenésico, se amplia. Ainda mais por que é
ele um fenômeno pra lá de fractal. São muitos os componentes, os
fatores de influenciação extremamente variáveis. Trata-se de uma
equação com n incógnitas.
Por
aí dá para se perceber que a visão mesquinha e rasteira do negro
como uma criatura supostamente inferior, apenas por que nele se
encontra reencarnado um espírito “culpado”, não se coaduna com
a filosofia espírita, libertária por natureza. É como se
reproduzíssemos o racismo numa nova versão, numa espécie de
racismo cármico, que iria justificar a segregação racial, como foi
e ainda é feito em alguns países. Basta ver os conflitos étnicos
que há muitos séculos existem na Índia, desde o tempo dos
brâmanes, passando pela época de Gandhi até hoje. É a
reencarnação a serviço do racismo.
Uma
doutrina de liberdade, como a espírita, não compactua com nenhuma
ideologia que vise a discriminação racial entre os grupos sociais.
O sectarismo racial, segundo o Espiritismo, tende a se tornar coisa
do passado. As pessoas e as nações evoluem. Segundo os Espíritos,
“os mundos também se acham submetidos à lei do progresso. Todos
começaram como o vosso, por um estado inferior, e a Terra mesma
sofrerá uma transformação semelhante, tornando-se um paraíso
terrestre, quando os homens se fizerem bons.”13 À medida que a
humanidade melhora em inteligência e moralidade, todas as formas de
preconceito e segregação tenderão a desaparecer definitivamente.
Nesse aspecto, o comentário de Kardec à questão citada é bem
oportuno: “Assim, as raças que atualmente povoam a Terra
desaparecerão um dia e
serão
substituídas por seres mais e mais perfeitos. Essas raças
transformadas sucederão à atual, como esta sucedeu a outras que
eram mais grosseiras.”14
Portando,
é dever dos espíritas, imbuídos pelo ideal renovador do
Espiritismo, lutar por uma sociedade mais justa e igualitária, onde
o negro e todos os grupos étnicos oprimidos tenham os seus direitos
garantidos e respeitados. Como afirmou o sociólogo Florestan
Fernandes, o negro é a “pedra de toque da revolução democrática
na sociedade brasileira.”15 A luta pela verdadeira democracia
racial, é uma luta que interessa não somente ao negro, mas a todos
os setores progressistas, inclusive aos espíritas, que estejam
efetivamente comprometidos com o processo de transformação
intelecto-moral da sociedade.
8.
KARDEC ERA RACISTA?
Esta
é uma questão que tem vindo à baila no movimento espírita, em
função de alguns textos de Allan Kardec acerca da raça negra,
contidos na Revista Espírita (RE) e em Obras Póstumas.
Na
RE de abril de 1862, no texto intitulado “Frenologia Espiritualista
e Espírita _ Perfectibilidade da Raça Negra”, Kardec procura
relacionar o Espiritismo com a Frenologia, segundo uma interpretação
espiritualista dessa antiga ciência.
No
tempo do fundador do Espiritismo, a Frenologia era uma ciência que
estava em voga e consistia no estudo das faculdades humanas a partir
da configuração craniana. Desenvolvida pelo médico e anatomista
alemão Franz Josef Gall (1758-1828), chegou a causar uma certa
polêmica nos meios acadêmicos da época.
Apesar
dessa ciência ser hoje totalmente ultrapassada, interessa-nos
algumas conclusões do fundador do Espiritismo.
Nesse
texto, Kardec procura demonstrar que a raça negra é inferior pelo
fato dela abrigar Espíritos imperfeitos, considerando a supremacia
do espírito sobre o corpo. Já os frenologistas, interpretavam essa
inferioridade pela ótica do materialismo, descartando a idéia da
alma.
Kardec
traça uma correlação entre o espírito e o corpo, concluindo que a
raça negra, enquanto etnia, jamais atingiria os níveis de perfeição
moral das raças caucásicas. Por sua vez, os Espíritos encarnados
na raça negra poderiam chegar, segundo ele, ao mesmo nível da
caucásica, devido à Lei de Progresso.
Pela
argumentação de Kardec, nota-se que ele era adepto do
Eurocentrismo, ideologia sectária que predominou no século 19, na
Europa, e que considerava a cultura européia como a mais evoluída.
E, conseqüentemente, numa correlação étnica, a raça branca
caucasiana seria a raça mais evoluída, superior à negra e à
amarela.
Essa
colocação torna-se mais evidente na “Teoria da Beleza”, contida
em Obras Póstumas, onde Kardec procura formular uma teoria estética
que se caracterizaria pela configuração de um ideal de beleza em
conformidade com a Lei de Progresso, aplicada no nível da evolução
material. Ele se apoia em um texto de Charles Richard, desconhecido
pesquisador inglês, intitulado “As Revoluções Inevitáveis no
Globo e na Humanidade”, que aborda a tese da perfectibilidade, da
evolução formal da raça humana e de sua beleza fisionômica.
Richard cita exemplos comparativos de fisionomias de personalidades
conhecidas da história da humanidade, como Júlio César, Brútus,
Cícero, Lívia, a filha de Agripina, Mossalina, etc. e analisa a
fealdade do homem primitivo, até a relativa beleza do homem moderno.
Aproveitando
a contribuição de Richard, Kardec parte do princípio da influência
do Espírito sobre o corpo, influência intelecto-moral, que se
expressa no formato da matéria corporal. Segundo ele, na medida em
que o Espírito evolui, a matéria vai sofrendo as conseqüências
dessa evolução, de modo que possa se adaptar e se adequar,
conformando-se ao estágio evolutivo do Espírito encarnado. Daí
Kardec concluir que o ideal de beleza seria o dos Espíritos mais
elevados, dos Espíritos puros.
Quanto
à raça negra _ e é esse o aspecto que nos chama mais a atenção _
Kardec a considera primitiva, imperfeita, feia e anti-estética.
Muito aquém de um ideal absoluto de beleza.
Na
opinião abalisada do fundador do Espiritismo, sob a ótica da beleza
corporal, os brancos são mais belos e superiores ao negro, cujos
“traços grosseiros, os lábios grossos, acusam a materialidade dos
instintos. Podem perfeitamente exprimir as paixões violentas, mas
não se prestariam às nuanças delicadas do sentimento e à
suavidade de um Espírito evoluído.”16 E conclui: “eis porque
podemos, sem fatuidade, julgarmo-nos mais belos que o negro e o
hotentote.”17
Bastariam
esses dois textos para colocar Kardec em situação delicada perante
o movimento negro. Todavia, ele era um homem de seu tempo e sujeito
também às injunções culturais, ao sistema de valores de sua
época. Cabe lembrar ainda que as teses arianistas do conde Gobineau,
citadas no início, lhe são contemporâneas.
Allan
Kardec tinha posições bem reacionárias em relação à mulher, ao
socialismo e no caso em questão, ao negro, como se pode observar em
seus escritos na Revista Espírita. Todo homem é prisioneiro de sua
época, e por mais larga a visão que possua, sempre pode-se notar
elementos datados em suas ações e reflexões. O fundador do
Espiritismo não passou incólume a essa regra. Antes dele, na
França, já havia a Sociedade de Amigos do Negro, sendo o líder
revolucionário Robespierre (1758-1794), seu conterrâneo, um dos
expoentes na luta contra o racismo, a discriminação racial e o
tráfico de escravos. Esse aspecto da luta humanista dos iluministas,
assim como determinadas reflexões sobre a questão do racismo _ bem
explícitas na obra de Jean Jacques Rousseau _ infelizmente não
foram incorporadas por Kardec, mesmo tendo sido ele muito
influenciado pelas teses iluministas.
Mesmo
partindo de um sentido estético duvidoso, para desembocar numa
conclusão ética da tipologia do negro, enquanto biotipo
supostamente inferior ao branco, isso não significa, de modo algum,
que Kardec fosse racista. Isso seria contrário aos seus princípios
éticos e humanistas bem manifestos na sua produção intelectual.
O
negro do século 19 não é igual ao negro de hoje, pois com o
advento da civilização e da urbanização das cidades, os negros
africanos e de outros países convivem em grupos sociais aptos para a
encarnação de Espíritos de maior porte intelectual, em função
das leis de afinidade que regem o processo palingenésico.
Há
de se considerar ainda que, no século passado, o conhecimento dos
europeus sobre a cultura africana era escasso. Sociedades africanas
de características totêmicas coexistiam nessa época, com culturas
alhures bem organizadas, com uma forma notável de organização
estatal, com rei, ministros, militares e funcionários. O negro não
era tão primitivo assim como pensava Allan Kardec.
A
visão kardequia do negro tem de ser considerada segundo o contexto
histórico em que foi formulada. Seria incorreto, insistimos, sob o
ponto de vista espírita, rotular Allan Kardec de racista, pura e
simplesmente. Essa palavra possui uma carga semântica muito forte,
inadequada para definir suas posições. Seria o mesmo que taxá-lo
de machista, devido a suas posições em relação à mulher ou de
direitista e ultra-reacionário, pelas posições contrárias ao
socialismo e ao movimento proletário francês.
Todavia,
não dá para “dourar a pílula” e ser condescendente com o
fundador do Espiritismo. Ele manifestou,
explicitamente,
um preconceito em relação ao negro. Longe de ser racista, podemos
afirmar que ele foi preconceituoso para com essa etnia. Mas, por
outro lado, não há nenhum indício de que ele tenha discriminado
algum indivíduo ou grupo de origem negra, seja no movimento espírita
ou fora dele.
Há,
é claro, uma certa dificuldade teórica em separar racismo de
preconceito racial e discriminação racial. A princípio, o
preconceito e a discriminação raciais seriam uma decorrência do
racismo enquanto ideologia e sistema de pensamento. No entanto, há
de se considerar ainda a brutal diferença entre o comportamento de
um membro da seita racista norte-americana Ku-Klux-Klan e o de um
homem comum debochado que gosta de contar piadas de negro. Um punk
skinhead é capaz de espancar e matar um homem apenas por ser
negro ou judeu, enquanto o outro, em função da cultura de
tonalidade racista do qual é subproduto, não passaria da piadinha
jocosa e cheia de preconceito.
Apesar
da atitude preconceituosa de Kardec em relação ao negro, fruto do
contexto em que viveu, sua obra sai ilesa de todas as críticas no
sentido ético, de discriminação e preconceito a determinada etnia.
A kardequiana é muito maior do que qualquer triagem filosófica que
possa ser feita, imperfeita como toda obra humana, mas coerente em
seus fundamentos e tão atual a ponto de oferecer à sociedade
elementos indispensáveis na luta contra o racismo.
9.
OS ESPÍRITAS E O RACISMO
A
escravidão tem sido encarada por uma grande parte dos espíritas
como uma expiação “cármica”, um acerto de contas com a
Divindade, sem considerar aspectos sócio-econômicos e políticos, e
sem perceber a presença da ideologia racista por detrás das
injustiças cometidas contra a raça negra.
Isso
pode ser observado na obra do Espírito Humberto de Campos, “Brasil
Coração do Mundo Pátria do Evangelho”, psicografada pelo médium
Francisco Cândido Xavier e lançada em 1938. Esta obra foi tomada
como fundamento ideológico e bússola do movimento espírita oficial
brasileiro, especialmente pela Federação Espírita Brasileira
(FEB), em suas atividades missioneiras. Nessa obra é mais do que
evidente a predominância de uma visão distorcida e metafísica da
história, como se esta estivesse subordinada diretamente aos
desígnios do “plano espiritual superior”.
Narra
o Espírito Humberto de Campos que um tal de anjo Ismael, considerado
por ele como o suposto guia espiritual do Brasil, em uma de suas
audiências oficiais com o “Cordeiro de Deus” (Jesus), deixa
transparecer sua “angelical amargura”, ao expor ao “Cordeiro”,
sua preocupação para com a escravidão negra. O “Cordeiro”, com
toda sua magnânima serenidade, acalma Ismael, dizendo-lhe que “se
não podemos tolher-lhes a liberdade, também não podemos esquecer
que existe o instituto imortal da justiça divina, onde cada qual
receberá de conformidade com os seus atos.
Havia
eu determinado que a Terra do Cruzeiro se povoasse de raças humildes
do planeta, buscando-se a colaboração dos povos sofredores das
regiões africanas; todavia, para que essa cooperação fosse
efetivada sem o atrito das armas, aproximei Portugal daquelas raças
sofredoras, sem violências de qualquer natureza. A colaboração
africana deveria, pois, verificar-se sem abalos perniciosos, no
capítulo das minhas amorosas determinações.”18
Afirma
o “Cordeiro” que devido “à educação condenável e
deficiente”19 do homem branco, seus desígnios não estavam sendo
cumpridos, e conclui: “os que praticarem o nefando comércio
sofrerão, igualmente, o mesmo martírio, nos dias do futuro, quando
forem também vendidos e flagelados em identidade de circunstâncias
(...) Colocarei a minha luz sobre essas sombras, amenizando tão
dolorosas crueldades. Prossegue com as tuas renúncias em favor do
Evangelho e confia na vitória da Providência Divina.“20
Ismael,
insatisfeito, ainda insiste e pergunta ao “divino Cordeiro”, se
não haveria possibilidade de “orientar a política dominante, no
sentido de se purificar o ambiente moral da Terra de Santa Cruz.”21
O “Cordeiro” responde que a ninguém cabe cercear os atos de
outrem e repete: “cada um será justiçado na pauta de suas
próprias obras.”22 Faz ainda referência aos portugueses
colonizadores como o povo remanescente dos antigos fenícios da
antigüidade, hoje afetados pelo orgulho oriundo da riqueza acumulada
com as conquistas, e finaliza sua pregação dizendo a Ismael: “se
não nos é possível cercear o arbítrio livre das almas, poderemos
mudar o curso dos acontecimentos, a fim de que o povo lusitano
aprenda, na dor e na miséria, as lições sagradas da experiência e
da vida.”23
Encerrada
a audiência, Ismael retorna à luta, “cheio de fervorosa coragem,
e os acontecimentos foram modificados”24 pelo “poder magnânimo e
misericordioso” do Cristo, o “Cordeiro de Deus”.
Conforme
a narração do Espírito Humberto de Campos, foi dos “ombros
flagelados” dos negros que nasceram “lições comovedoras,
imunizando todos os espíritos contra os excessos do imperialismo e
do orgulho injustificáveis das outras nações do planeta,
dotando-se a alma brasileira dos mais belos sentimentos de
fraternidade, de ternura e de perdão.”25
E
por que teriam os negros sofrido tanto com a escravidão? Muito
simples. Os escravos seriam, segundo Humberto, “os antigos
batalhadores das cruzadas, senhores feudais da Idade Média, padres e
inquisidores, espíritos rebeldes e revoltados, perdidos nos caminhos
cheios da treva das suas consciências polutas.”26
Seguindo
a lógica desse raciocínio “cármico”, os negros sul-africanos,
vítimas durante muitas décadas do apartheid, do racismo
legalizado, seriam quase sem sombra de dúvida, os traficantes de
escravos, os senhores de engenho, os capitães do mato, todos agora
reencarnados nesse país, para sofrerem as conseqüências de seus
próprios atos. Posição insustentável, como vimos, à luz da
filosofia científica do Espiritismo. Interessante é que Humberto de
Campos não faz menção aos índios, vítimas de hediondo genocídio
causado pelos bandeirantes portugueses. E os milhões de povos
indígenas trucidados pelos espanhóis? E a cultura inca, maia e
asteca, todas trucidadas também pelos imperialistas de Castela?
Teriam sido algozes do passado? Essa interpretação contábil do
processo evolutivo dos seres e dos povos, perde-se numa cadeia sem
fim, num emaranhado de projeções mecanicistas das circunstâncias
históricas. Quem teria atirado a primeira pedra? Aonde a origem de
todo esse conflito existencial?
No
movimento espírita, as análises que têm sido feitas da questão do
racismo e da escravidão negra, deixam transparecer as influências
da teoria arianista, da visão positivista e idealista da história,
que desconsidera os fatos em sua dinâmica, em suas contradições. É
só observar a grande maioria dos periódicos espíritas, que em
1988, ano do centenário da abolição, publicaram chamadas,
ilustrações e artigos de consistência duvidosa. Muitas destas
publicações deram em sua primeira página, a foto da “Redentora”,
da Princesa Isabel, considerada a libertadora dos escravos, mas que
na verdade, no processo de desagregação da ordem escravista, teve
um papel subalterno e secundário. Já Humberto sustenta que a
“Redentora” foi verdadeiramente missionária, que reencarnou “com
a tarefa definida no trabalho abençoado da abolição.”27 Talvez,
devido a essa tarefa supostamente assumida por Isabel no mundo dos
Espíritos, é que D. Pedro II se afasta do trono “por motivos de
saúde”, deixando-o vago (!?). Na narração de Humberto,
nota-se
que os Espíritos teriam armado um esquema de bastidores, a fim de
afastar o imperador e permitir a entrada, novamente em cena, da
princesa pela terceira vez, para assinar A Lei Áurea. É até
possível que os Espíritos tenham provocado o afastamento de D.
Pedro II do trono. No entanto, é pura ingenuidade considerar a
Princesa Isabel como a grande protagonista desse cenário histórico.
Se ela não tivesse reencarnado não faria muita diferença. Pela
própria força das coisas, segundo a expressão dos
Espíritos, a escravidão negra, em 1888, já estava dando os seus
últimos suspiros.
Costuma-se
negar que haja qualquer tipo de influência racista no movimento
espírita. No entanto, temos de
considerar
que esse é um movimento onde a classe média predomina, trazendo
consigo para o seu interior, todos os preconceitos típicos dessa
camada social. Sem esquecer que na classe média, a quantidade de
brancos é bem pequena.
A
classe dirigente do movimento espirita brasileiro é, em sua grande
maioria, de origem branca. Os negros são sempre minoria.
Quantos
dirigentes de centros espíritas e sessões mediúnicas não têm
negado a palavra a determinados Espíritos por se apresentarem como
índios e pretos velhos, julgando-os inferiores, devido à
ascendência étnica de sua encarnação pregressa? O preto velho é
o que mais sofre. Muitas receitas, ervas e chás que essa entidade
receita, quando se manifesta em terreiros de umbanda, só adquiriram
o seu devido valor quando obtiveram a chancela da medicina oficial.
Comunicação
no centro espírita, nem pensar, mesmo que seja sem os aparatos
típicos a que ele está acostumado (charuto, marafo, roupa branca,
vela, etc.).
A
respeito da manifestação de índios e pretos velhos nas sessões
mediúnicas, o filósofo espírita Herculano Pires tece interessante
abordagem e analisa o espanto de algumas pessoas impregnadas, segundo
ele, “de antigos preconceitos”. Herculano considera também a
possibilidade de que tais fenômenos ocorrem no meio espírita como
“uma ação programada no sentido de mostrar a iniqüidade das
discriminações raciais.”28
O
movimento espírita, como qualquer outro movimento, seja ele qual
for, sofre as influências do meio cultural. Na nossa cultura, o
sentimento racista se expressa, como vimos, das mais variadas formas.
Ela está toda impregnada por este sentimento, que condiciona os
valores e o comportamento dos grupos sociais. Não há no movimento
espírita o racismo manifesto. Ele não é um movimento como o dos
skinheads, por exemplo, que se engajam em uma cruzada
segregacionista contra os negros, judeus e nordestinos. Todavia, as
pessoas que o compõem se acham mergulhadas numa atmosfera tal que as
conduz a comportamentos que poderíamos classificar como racistas.
Apesar de serem ideologicamente contra qualquer manifestação
racista, podem assumir, sem perceberem, comportamentos nitidamente
discriminatórios em relação ao negro, até de modo inconsciente.
Pode-se
citar o exemplo do conhecido orador carioca Raul Teixeira, de origem
negra, chamado de divaldo preto, dadas as semelhanças de sua
oratória e gesticulação com a do conferencista baiano Divaldo
Pereira Franco. É claro, que na maioria das vezes, esse apelido é
usado de modo aparentemente carinhoso, porém, já presenciamos
situações em que era evidente o preconceito racial, pelo modo
jocoso como ele foi usado.
Com
o advento dos movimentos de consciência negra, religiões
afro-brasileiras como a Umbanda, o Candomblé, o Carimbó, etc.
passaram a ser mais valorizadas e encaradas como autênticas
manifestações da religiosidade nacional, em que pese as influências
do cristianismo e do Espiritismo sobre elas.
Afirma
o jornalista Ubiratan Machado que “ao lado do kardecismo,
desenvolveu-se um vigoroso espiritismo popular.
Em
alguns momentos, a vitalidade deste chegou a parecer uma ameaça,
porém, era apenas aparente. O caminho dos vários espiritismos,
apesar dos atalhos de ligação e das influências recíprocas,
sempre foram distintos.”29
Essa
distinção, colocada por Ubiratan Machado quanto às relações
entre o Espiritismo e as religiões sincréticas, entre os vários
espiritismos, atualmente ganha outras nuances com o movimento negro,
a ponto de se estabelecerem nítidas peculiaridades entre Umbanda e
Espiritismo, por exemplo, em nível terminológico e semântico. Isso
porque, para muitos líderes negros, ”Espiritismo é coisa de
branco, é elitista, e foi fundado por um branco europeu”. E a
Umbanda, uma religião de negros, uma religião de massas. Através
dela o povo tem livre acesso à manifestação mediúnica, enquanto
que o Espiritismo, pela sua própria natureza filosófico-científica,
confere a essas manifestações um tipo de tratamento
diferenciado,
metodológico e bem mais reservado.
De
certo modo, o avanço do movimento negro tem uma contrapartida
favorável à divulgação do Espiritismo. Na Bahia, por exemplo,
onde os movimentos são bem organizados (vide Olodum, Afoxé Filhos
de Gandhi, Timbalada, etc.), não existe a confusão que se faz, no
sul do Brasil, entre Espiritismo e Umbanda, principalmente porque a
religião afrobrasileira lá é bem desenvolvida e disseminada.
Enquanto que no sul, além do preconceito, há muita desinformação
acerca desse tema.
10.
RACISMO ATÁVICO
A
raça adâmica, constituída por Espíritos emigrados de outros
planetas, tese primeiramente desenvolvida por Allan Kardec em A
Gênese (cap. XI), ganhou desdobramentos através da obra do Espírito
Emmanuel e do fundador da Aliança Espírita Evangélica, Edgard
Armond.
Para
Emmanuel, foi com esses Espíritos exilados de Capela, uma estrela da
constelação de Cocheiro, “que
nasceram
no orbe os ascendentes das raças brancas.”30 As raças negra e
amarela, autóctones, já existiam antes da branca, teoria reafirmada
por Edgard Armond em sua obra, Os Exilados de Capela, conforme
informações colhidas do esoterismo mas, segundo ele, através da
inspiração. Para Armond, que se fundamenta claramente na tradição
esotérica, a quinta raça, a branca, seria “a última, no tempo, e
a mais perfeita que apareceu na Terra, como fruto natural de um longo
processo evolutivo”31. Estes seriam os aryas, “os homens
da gloriosa quinta raça.”32
O
fundador do Espiritismo não faz referência explícita ao surgimento
da raça branca, a não ser na vinculação da raça adâmica à
figura de Adão, daí esse nome. “Mais adiantada do que as que a
tinham precedido neste planeta, a raça adâmica é, com efeito, a
mais inteligente, a que impele ao progresso todas as outras. A Gênese
no-la mostra, desde os seus primórdios, industriosa, apta às artes
e às ciências, sem haver passado aqui pela infância espiritual, o
que não se dá com as raças primitivas.”33 Kardec considera as
raças negras, mongólicas e caucásicas, como de origem própria,
nascidas, segundo ele, simultaneamente ou de modo sucessivo, em
diversos pontos do planeta. Tese esta que corrobora as assertivas de
O Livro dos Espíritos, como se vê no item IV, Diversidade das Raças
Humanas (Livro Primeiro, cap. III - Criação) , que reproduzimos a
seguir:
52.
De onde vem as diferenças físicas e morais que distingüem as
variedades de raças humanas na Terra?
_
Do clima, da vida e dos hábitos. Dá-se o mesmo que se daria com
duas crianças da mesma mãe, que, educadas uma longe da outra e de
maneira diferente, não se assemelhassem em nada quanto ao moral.
53.
O homem apareceu em muitos pontos do globo?
_
Sim, e em diversas épocas, e é essa uma das causas da diversidade
das raças; depois, o homem se dispersou pelos diferentes climas, e
aliando-se os de uma raça aos de outras, formaram-se novos tipos.
53-a.
Essas diferenças representam espécies distintas?
_
Certamente não, pois todos pertencem à mesma família. As
variedades do mesmo fruto acaso não pertencem à mesma espécie?
54.
Se a espécie humana não procede de um só tronco, não devem os
homens deixar de considerar-se irmãos?
_
Todos os homens são irmãos em Deus, porque são animados pelo
espírito e tendem para o mesmo alvo. Quereis sempre tomar as
palavras ao pé da letra.
Admitindo-se
essa teoria, é bem possível que, por causa das características
intelecto-morais dos capelinos, bem superiores à dos Espíritos já
reencarnados na Terra, tenha surgido uma espécie de racismo atávico,
seria um racismo primordial, que viria talvez justificar a ideologia
de superioridade racial para esses Espíritos, facilmente perceptível
nas castas da Índia e na “vaidosa aristocracia espiritual” dos
hebreus, conforme a expressão emmanuelina.
Todavia,
sob um outro enfoque, poderíamos considerar essa teoria como
corolário de uma certa dose de preconceito racial contra a raça
negra e a amarela, cuja origem étnica seria supostamente inferior à
branca, um biotipo mais evoluído(?) e adequado à encarnação de
Espíritos mais desenvolvidos.
Edgard
Armond e Emmanuel não explicam como surgiu, em termos genéticos e
biofísicos, a raça branca. E em que sentido ela seria mais evoluída
tipologicamente às demais raças. Por ora, faltam maiores
informações para que esta teoria tenha a fundamentação desejada
por muitos de seus adeptos mais extremistas, cuja formulação se
aproxima inegavelmente da teoria arianista de Gobineau e do
Eurocentrismo.
Isto
posto, há outro aspecto que é interessante observar. Trata-se da
mentalidade racista que certos povos e Espíritos carregam e trazem
consigo ao reencarnarem, seja por orgulho ou auto-preservação.
As
informações dos Espíritos contribuem para ilustrar a
característica de certos povos, como os hebreus, os hindusarianos,
os egípcios, etc. pois, através de estudos sociológicos e
antropológicos, pôde-se notar, no seu sistema de valores, a
presença de uma ideologia racista. Em nossos dias temos exemplos
marcantes de nações racistas, em função das circunstâncias
sociais e econômicas, e do nível moral dos Espíritos reencarnados.
Mesmo com a queda do regime do apartheid, a Africa do Sul é
um exemplo a ser lembrado. E isso ocorre também nos grupos sociais,
como é o caso dos sionistas, de alguns esquadrões de extermínio,
dos anti-semitas e tantos outros que se engajam numa luta sectária
contra determinadas etnias ou grupos sociais. Os skinheads,
exemplo já citado, é um dos grupos que mais explicitam a
incorporação da ideologia racista. Tanto que esses punks
anti-semitas incorporaram, em seu comportamento, toda a simbologia
nazista e lêem assiduamente a obra My Kempf, escrita por Adolph
Hitler, o célebre líder dos nazistas. Não estariam aí nazistas
reencarnados?
11.
CONCLUSÃO
O
racismo é um desse sistemas que tendem a desaparecer, na medida em
que a humanidade evolui e adquire novos conhecimentos, valores e
virtudes que não fiquem somente no papel, ou no mero discurso de
religiosos hipócritas e humanistas de segunda classe.
No
Brasil, a discriminação racial já é caso de polícia. Sob o ponto
de vista ético, o preconceito e a discriminação raciais se
tornaram intoleráveis. A legislação prevê penalidades àqueles
que desrespeitarem o direito de um cidadão, apenas por pertencer a
determinada etnia, considerada “inferior”. Mesmo com o
crescimento de grupos anti-semitas como os neonazistas, no nosso país
e no mundo, não há como retroceder a antigos valores espúrios, que
tanto mal trouxeram à humanidade.
Há
muito ainda que se avançar nesse campo. Somente o próprio negro
poderá conquistar seu espaço na cultura, em todas as áreas do
conhecimento. Ninguém fará por ele aquilo que deve ser feito para o
seu próprio bem estar. Do mesmo modo, as etnias da Europa Oriental,
da antiga “cortina de ferro”, terão de se organizar se quiserem
que sua voz seja ouvida e seus direitos garantidos, bem como as
comunidades negras de toda a África, e de todos os grupos étnicos
discriminados em qualquer parte do planeta.
O
racismo, talvez por ter sido considerado como uma questão menor pelo
movimento espírita, é um tema pouco abordado. A bibliografia é
escassa. Na década de 40, o filósofo espírita David Grossvater, da
Venezuela, de ascendência judaica, em alguns momentos de sua obra,
ainda desconhecida no Brasil, chegou a abordar o tema. Os pensadores
espíritas brasileiros Herculano Pires e Deolindo Amorim, de “en
passant”, também se referiram ao racismo, mas sem se debruçar com
maior profundidade.
A
questão das minorias, a questão da mulher, dos homossexuais, das
etnias discriminadas, dentre outras, não podem ser desprezadas. Isso
significa inserir o Espiritismo na modernidade e assim, enfrentar
toda a problemática existencial de nosso tempo, sem o receio de
reavaliar _ segundo uma re-leitura crítica, contextualizada e
qualitativa _ determinadas posições de Allan Kardec e dos
Espíritos que participaram da estruturação da filosofia espírita.
Se
as novas gerações de espíritas não realizarem essa tarefa, o
movimento espírita corre o risco de ficar como aquele sujeito da
música “A Banda”, de Chico Buarque, que “estava à-toa na
vida” e foi à janela “pra ver a banda passar”.
12.
NOTAS
1.
SANTOS, Joel Rufino dos. O que é Racismo, p. 65.
2.
VÁRIOS AUTORES, São Paulo 1975: Crescimento e Pobreza,
p.
104.
3.
KARDEC, Allan, O Livro dos Espíritos, q. 799.
4.
Ibid. q. 317.
5.
Ibid. q. 806.
6.
Ibid. q. 803, o grifo é meu.
7.
Ibid. q. 829.
8.
Ibid. q. 831.
9.
Ibid.
10.
Ibid. q. 52.
11.
Ibid. q. 54.
12.
Ibid. q. 132.
13.
Ibid. q. 185.
14.
Ibid.
15.
FERNANDES, Florestan, Revista Humanidades.
16.
KARDEC, Allan, Obras Póstumas, p. 130.
17.
Ibid., p. 130.
18.
CAMPOS, Espírito Humberto de, Brasil Coração do Mundo
Pátria
do Evangelho, p. 51.
19.
Ibid.
20.
Ibid.
21.
Ibid., p. 52.
22.
Ibid.
23.
Ibid., p. 68.
24.
Ibid.
25.
Ibid.
26.
Ibid., p. 55.
27.
Ibid., p. 202.
28.
PIRES, Herculano, Ciência Espírita e suas Implicações
Terapêuticas, p. 100.
29.
MACHADO, Ubiratan, Os Intelectuais e o Espiritismo, p. 230.
30.
EMMANUEL, Espírito, A Caminho da Luz, p. 37.
31.
ARMOND, Edgard, Os Exilados de Capela, p. 81.
32.
Ibid., p. 82.
33.
KARDEC, Allan, A Gênese, p. 226/27.
13.
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Eugenio
Lara, arquiteto e design gráfico, é redator e produtor gráfico do
jornal de cultura espírita Abertura, membro fundador do Centro de
Pesquisa e Documentação Espírita (CPDoc) e do Instituto Cultural
Kardecista de Santos.
Trabalho
concluído em 1994, apresentado no Centro de Pesquisa e Documentação
Espírita (CPDoc) e no II Simpósio Brasileiro do Pensamento
Espírita, de 1991.